‘Se fosse menos cobarde teria feito melhores filmes’

Retrato de uma lenda viva na primeira pessoa. Levanta-se às 6.30 horas da manhã, exercita-se numa passadeira rolante, escreve, toca clarinete e vê jogos de basquete. Diz que leva uma vida de classe média. Rodou os últimos filmes na Europa, mas preferia não sair de Nova Iorque.

apesar da sua falta de auto-estima, de que faz prova nos seus filmes, woddy allen já foi nomeado para mais de 20 óscares, nas categorias de realizador, produtor e argumentista. a esse sucesso contrapõe o que diz ser uma vida desinteressante e metódica, feita de hábitos peculiares, em que invariavelmente entra o exercício na passadeira rolante, duas horas de escrita e ensaios de clarinete. e para os tempos livres? gosta de beber uma cervejinha diante da televisão, em t-shirt, e sai de casa para assistir jogos de basquete.

em ‘meia-noite em paris’ o realizador norte-americano prega-nos uma partida aos disfarçar-se de owen wilson e revive a nostalgia da belle époque, privando com hemingway, dalí, picasso e buñuel, numa aproximação a ‘a rosa púrpura do cairo’ que conta com marion cotillard, rachel mcadams e até a primeira-dama francesa, carla bruni.

durante meia hora partilhámos com woddy allen um mundo que está para lá do ecrã.

você deve ser um homem muito atarefado. ainda consegue encontrar tempo para descansar entre os vários projectos que tem em mãos?

parece que sou uma pessoa muito ocupada, mas na verdade não sou.

não me diga!

é verdade. não sou muito ocupado. durante o ano tenho tempo para fazer o meu filme, para escrever, fazer o casting, realizá-lo e montá-lo. e ainda me resta tempo para tocar com a minha banda, fazer digressões de jazz. mas também para brincar com os meus filhos, levá-los à escola, fazer os meus exercícios, assistir aos jogos de basquete, ver filmes, passear…pode parecer que trabalho muito mas não é verdade.

como é o seu dia típico?

levanto-me de manhã cedo, por volta das 6.30h, levo os miúdos à escola e escrevo. por volta do meio dia, pratico um pouco de clarinete, e posso ir a um jogo de basquete. no dia seguinte se não me apetecer não escrevo. mas normalmente apetece-me. está a ver, não é o mesmo que uma professora ou um médico. todos os dias têm de estar presentes à mesma hora até ao fim do dia. a minha vida é muito mais preguiçosa.

a sua família também gosta desta parte de ir aos festivais e ficar fechada num hotel?

eles gostam imenso. sempre que faço um filme em barcelona, londres, paris ou roma eles podem passar vários meses num hotel e fora de nova iorque. gostam mais do que eu que preferia não sair de lá. até porque em casa tenho tudo o que preciso. o ar condicionado, os medicamentos, o clarinete. está tudo ali.

a verdade é que faz quase uma filme por ano. trabalhar parece ser quase uma necessidade. está a ver-se trabalhar quando tiver, por exemplo, a idade de manoel de oliveira, que tem 103 anos e ainda muitos projectos para concretizar?

isso seria óptimo. acho que vou continuar a trabalhar até não poder mais ou até deixarem de financiar os meus filmes. obviamente não tanto quanto o manoel, pois ele é um fenómeno. trabalharei enquanto a saúde não me falhar.

a personagem de owen wilson parece estar com uma mulher que não ama. isso sucede várias vezes nos seus filmes. acha que por as pessoas não gostarem de estar sozinhas aceitam viver com pessoas que não amam?

há uma quantidade enorme de pessoas que têm essa vida. muitas estão em relações em mesmo em casamentos porque têm medo de estar sozinhas. preferem o compromisso de um casamento em que estão contentes 20% do tempo e descontentes os outros 80% a não ter ninguém. se fosse possível acabar com uma relação premindo um botão penso que muitos o fariam mas como é complexo e leva algum tempo, a solidão com companhia acaba por tornar-se mais agradável.

a personagem de hemingway diz no filme que o amor de uma grande mulher pode fazer-nos esquecer a morte. é a opinião de hemingway ou a sua?

é a de hemingway.

concorda com ele?

não, não concordo. concordo mais com a personagem do poeta [w.h.] auden, que fala na morte ser o som de uma tempestade ao longe durante um piquenique. sobre a morte eu tenho uma posição muito concreta: sou contra.

mas identifica-se mais com a opinião de auden?

é isso que eu sinto. é algo que está sempre lá fora. mesmo nos melhores momentos. mesmo nas celebrações, nos casamentos, nos melhores momentos. a morte está lá sempre.

é o seu maior receio?

sim, é o meu maior receio. não é o seu?

mas o hemingway também diz que «quem não desafiar a morte não poderá escrever nada grandioso»…

isso é verdade. a minha cobardia em vida custou-me muito. no meu quotidiano e na minha arte. se eu fosse mais corajoso e menos cobarde, poderia ter alcançado mais, ido mais longe. teria escrito melhor e faria melhores filmes. em geral teria uma vida melhor. bom, por outro lado, se fosse demasiado ousado também poderia já não estar vivo.

porque não se considera um grande artista ou grande escritor?

porque é verdade, não sou. mas mesmo se fizesse essa pergunta a um grande mestre, digamos picasso, ele dira a mesma coisa. teria alcançado mais se os seus eventuais limites tivessem sido ultrapassados. todos os artistas são muito conscientes das suas falhas.

conheceu alguns dos artistas que aparecem no seu filme, como dali, buñel ou picasso?

conheci algumas pessoas que foram bons artistas. de todos, o primeiro que conheci depois tornou-se meu amigo, o groucho marx. sempre achei divertido e sempre gostei dele. quando o conheci, ele foi muito simpático. mas eu pensei: «estou eu aqui num restaurante com o groucho marx e ele não tem o seu bigode…» parecia um tio judeu, um parente afastado da minha mãe. ele foi sempre humano, o que me desgostou um bocadinho, por não ser aquele tipo que estava sempre a contar piadas. por isso, quando tive a oportunidade de conhecer louis armstrong, acabei por não arriscar…

porquê?

estas pessoas são deuses para mim e  gosto de os manter assim.