o seu primeiro emprego, como jornalista, foi no diário de lisboa, em 1962, aos 18 anos. lembra-se do primeiro artigo?
fui para o diário de lisboa atender os telefonemas dos correspondentes. depois, ao fim de algum tempo, num período de férias e como havia pouca gente, comecei a sair e a fazer algumas coisas. o primeiro serviço fora da redacção de que me lembro foi um incêndio na avenida duque de loulé.
foi uma reportagem grande?
não. o incêndio foi pequeno [risos].
quando foi atender telefonemas já tinha o desejo de vir a fazer jornalismo?
completamente. fui para lá através do doutor mário neves, que era director adjunto. tinha sido colega de uma filha dele e ela disse-me para ir lá falar com o pai. ao fim de dois meses a tentar todos os dias ele lá me recebeu. perguntou-me: ‘você quer ser jornalista ou quer um emprego?’. ‘quero ser jornalista’. ‘é que se quer um emprego, eu arranjo-lhe um na fil a ganhar três vezes mais. se quer ser jornalista, entra para aqui, ganha 50 escudos por dia e quando não trabalha não ganha’. mas eu queria ser jornalista.
de onde vinha essa ideia fixa?
provavelmente daquela ideia romântica do jornalismo, de defender os fracos e denunciar os poderosos. e também porque já gostava muito de escrever.
depois do diário de lisboa chegou à associated press (ap).
sim. a ap abriu-me as portas do mundo. estive quase um ano entre lisboa e madrid e depois fui para são paulo. foi uma experiência fantástica. a ap foi a minha grande escola.
há algum episódio profissional que ilustre bem esse tempo?
talvez um na bolívia. cheguei lá pouco tempo depois da morte do che guevara e fiz uma entrevista ao então presidente, o rené barrientos. garantiu-me que não tinha tido nada que ver com a morte dele e eu acreditei. lembro-me disso perfeitamente. mais tarde, com os documentos que foram libertados, ficou a saber-se que foi a cia quem deu a ordem. o barrientos disse-me, inclusive, que achava a morte do che um erro do ponto de vista político. não porque tivesse pena dele, mas porque percebia que se estava a criar um mártir.
do ponto de vista histórico, essa entrevista foi a mais marcante de todas?
pessoalmente, foi. até porque o assunto me tocava. para mim, a morte do che foi uma dor. outra entrevista que também me marcou muito foi com a viúva do salvador allende, em 1973, depois do 11 de setembro do chile. foi para a bbc, em londres. impressionou-me pelo lado quase íntimo da conversa. ela não falou como a viúva dessa figura histórica que era o allende, mas como uma mulher que tinha perdido o marido. depois também tive alguns episódios cómicos, como aquele com o salvador dalí a mandar-me pôr de joelhos [risos].
como foi essa história?
fui entrevistá-lo – para o tal & qual, na rtp – a casa dele, perto de barcelona, em 1975. não foi difícil marcar porque ele tinha um excelente secretário que tratou de tudo. quando lá cheguei encontrei aquela figura de que todos nos lembramos com a sua corte. eram 10 ou 15 pessoas, todas elas estranhíssimas. então ele resolveu representar para aquela plateia e disse: ‘de rodillas’ [risos]. eu disse: ‘jamás’. ainda ficámos ali um bocado, com ele a insistir e eu a dizer que não, que assim me ia embora [risos].
como acabou?
ele lá se esqueceu dos joelhos e deu-me uma entrevista estranhíssima, mas muito divertida, sobre a importância de perpignan e o centro da terra. outra que também me marcou foi com o presidente de moçambique, o samora machel. na altura ninguém o conhecia em portugal, mas de cada vez que ele abria a boca havia uma série de portugueses que vinha embora. fui esperá-lo a tete e fiz com ele aquela célebre viagem do rovuma até maputo. nos primeiros três dias não consegui falar com ele, até que passei por cima de todo o seu entourage e pedi-lhe a entrevista. falámos no meio do mato e ele acertou na previsão que fez para a evolução da áfrica do sul e de moçambique. foi uma conversa muito interessante, mas vou confessar-lhe uma coisa: no início, detestava fazer entrevistas. o que eu gostava era de trabalhar a informação e dar corpo ao texto.
depois apaixonou-se pelas entrevistas?
mais pelo acto de conversar.
e qual a fronteira entre uma entrevista jornalística e uma conversa de entretenimento?
para uma entrevista jornalística na televisão, por exemplo, eu procurava não falar antes com o entrevistado, nem sequer queria vê-lo. e tinha razões para isso. lembro-me do doutor mário soares, quando era primeiro-ministro, entrar pelo estúdio e dizer: ‘ó letria, você não me faça aquela pergunta’. já não sei o que era, mas claro que foi a primeira pergunta que fiz, até porque era a pergunta que toda a gente queria fazer. esteve dois meses sem me falar ou a falar-me por cima da burra. por isso, quando eram programas de informação, procurava sempre não ter contacto com o entrevistado. para uma conversa já não era assim. queria conhecer o entrevistado e estar com ele antes.
e momentos embaraçosos?
lembro-me de um episódio curioso com o álvaro cunhal. a única vez que me recordo de o ver escorregar foi comigo, no directíssimo, na rtp. a determinada altura perguntei-lhe para que caixa é que ele descontava. ele começou, com uma certa agressividade, a dizer que já estava à espera que começassem a mexer na sua vida particular. lá respondeu que era para a caixa dos empregados de escritório e depois – aí é que se espalhou – disse: ‘o meu salário é baixo, os comunistas são pessoas modestas, que não precisam de ganhar muito’. perguntei-lhe quanto ele ganhava e ele revelou que era 7 contos. era de facto muito pouco. a questão é que isto se passou num período do ano em que havia negociações entre os sindicatos e o patronato. a partir daí toda a gente começou a dizer: ‘então vocês querem mais dinheiro? os comunistas ganham pouco, são pessoas modestas’ [risos]. foi de tal forma que o pcp teve de fazer um comunicado a esclarecer o assunto.
só para termo de comparação, qual era o seu ordenado na altura?
vinte e quatro contos.