‘Sempre vivi o amor e gosto de traduzi-lo em palavras’

Estudou psicologia na Suíça e foi aluno de Jean Piaget, trabalhou como estivador no porto de Amesterdão, viveu em Paris o Maio de 68, foi preso e torturado no Brasil. E agora comemora 40 anos de canções com um novo disco – Mútuo Consentimento. Sérgio Godinho em entrevista.

a sua memória musical mais antiga é com a sua mãe ao piano?
provavelmente, como música mais elaborada, sim. mas também havia as canções. o meu pai cantava muito. é provável que deva tanto ao meu pai como à minha mãe o gosto pelas canções.

o seu pai era comerciante, não era?
sim, de têxteis.

e a sua mãe? trabalhava?
não. mas não me apetece muito dar uma entrevista sobre isso. posso falar lateralmente, mas não acho que seja…

… estamos a falar lateralmente.
se a minha mãe trabalhava ou não já sai um bocadinho do âmbito.

estou só a tentar definir o ambiente familiar.
não trabalhava. gostava que ela tivesse dado aulas de piano, inclusive a mim. tenho muita pena de não tocar. sei pôr as mãos no teclado e sei ler mal.

mas, em casa, no fundo, tinha muitos estímulos para a música…
sim. havia uma discografia muito boa. muita música brasileira: ary barroso, dorival caymmi… e muita música francesa.

jazz também?
sim. os discos do benny goodman. e o meu tio, irmão da minha mãe, tocava os standards americanos. depois, já não por influência familiar, apareceram os beatles.

os beatles foram um ponto de viragem?
e o zeca também. mas sim, claro que foram. tinha 17 anos e de repente aparecem os beatles. eram praticamente da minha idade e estavam a fazer aquilo.

para si, o zeca afonso surgiu ao mesmo tempo que os beatles?
logo a seguir, com ‘os vampiros’ e com o ‘menino do bairro negro’. aí já havia uma metáfora social, com um grande lirismo, e uma enorme riqueza musical. já era o zeca em rompimento com o statu quo coimbrão.

quando o conheceu, em paris, sentiu que estava perante um ídolo?
senti que estava a conhecer um tipo que admirava profundamente e que, como pessoa, tinha um carisma muito forte. tinha uma vida muito patente em cada gesto. era um tipo de uma irrequietude absolutamente incrível. muito vivo, muito auto-crítico e com um sentido de humor devastador. não dava grandes gargalhadas, mas ficava a rir-se com os olhinhos. o zeca foi muito importante na minha vida, apesar de não ser um filho dele em termos estilísticos.

há canções suas que se tornaram emblemáticas. gostava que me falasse de algumas. podemos começar por ‘o primeiro dia’, do álbum pano-cru (1978).
é uma canção sem refrão, que tem um remate, uma frase gancho. ‘hoje é o primeiro dia do resto da tua vida’ era uma frase que eu já conhecia – quis assinalar isso mesmo ao escrever ‘vem-nos à memória uma frase batida’. o que me interessa, muitas vezes, é ampliar os sentidos de algumas frases que usamos no dia-a-dia. este novo disco, por exemplo, chama-se mútuo consentimento. é um termo normalmente usado num contexto legalista que eu quis ampliar. ‘o primeiro dia’ permitiu-me escrever sobre uma espécie de percurso de uma ruptura pessoal. aconteceu numa altura de mudança na minha vida.

uma mudança a nível pessoal?
pessoal e amoroso, embora não seja uma canção de amor. é uma canção vivencial.

estava em processo de separação?
sim, mais ou menos, mas isso não interessa. é aquele processo em que sentes que é bom estar sozinho, depois perdes-te, afundas-te e depois renasces com uma nova força e um novo conhecimento pessoal. na canção a forma para levar essa narrativa a bom porto dá-se através da metáfora dos copos. aparece um copo vazio e depois aparece vinho da casa, que é o reconhecimento de nós próprios.

‘com um brilhozinho nos olhos’, 1981, álbum canto da boca.
é uma canção que deu certo, que é feliz, que tem luz. é uma canção lúdica, com uma narrativa que fala do prazer de um encontro, de um amor. o refrão vai subindo e é muito orelhudo. é engraçada porque, ao dizer ‘hoje soube-me a pouco’, passa a ideia de uma insatisfação, mas depois acaba com ‘hoje soube-me a tanto’.

disse que foi uma canção que deu certo. o que faz com que uma canção dê certo?
isso é um mistério que eu próprio não consigo desvendar, mas não penso nisso quando escrevo. claro que quero chegar às pessoas, mas não é esse o meu impulso.

‘lisboa que amanhece’, álbum na vida real, 1986.
é um caso muito misterioso para mim. a canção teve várias inspirações, uma delas foi o fado ‘lisboa à noite’ – ‘lisboa adormeceu, já se acenderam mil velas nos altares das colinas…’. é uma canção sobre a noite que se espelha no rio. queria que tivesse esse tempo de fim de noite, essa sensação da noite ser eterna com os seus vários personagens. fala também da transição da noite para a manhã, uma altura em que ‘já tudo pode ser aquilo que parece’. há ilusões na noite que são atraentes. gosto da noite, desse momento em que o tempo pára.

há menos máscaras à noite?
ou mais. talvez sejam máscaras diferentes. há umas que não se vêem de dia e outras que não se vêem de noite. a luz que incide sobre as máscaras é diferente. há verdades que aparecem à noite. tal como diz a minha canção ‘a última sessão’, ‘a verdade é coisa enganosa’.

por que diz que o ‘lisboa que amanhece’ é um caso misterioso para si?
porque metade da canção surgiu, entre aspas, toda feita. comecei a fazer uma sequência harmónica e de repente estava ali quase metade da canção, em apenas dia e meio. isso é um pouco misterioso.

quanto tempo demora uma canção?
pode demorar muito. e eu sou muito teimoso nisso. encontrar e não encontrar as formas, aparecer ou não uma letra, voltar a ela no dia seguinte e achar que aquilo está fracote… há poucas coisas que são rápidas.

qual a fronteira entre uma letra e um poema?
recuso essa fronteira. há muitas letras que podem ser consideradas poesia, que eu considero má poesia. e há letras que podem ser só consideradas letras e que eu considero poesia. essa fronteira é artificial.

uma boa letra pode ser um mau poema…
há letras minhas que não valem como poesia, mas não me interessa essa fronteira, que ainda por cima está em permanente evolução. o herberto hélder, há três séculos, seria considerado um poeta? de certeza que não. em contrapartida há livros de poemas, que provavelmente até ganharam alguns jogos florais, que acho que são mesmo má escrita. mas como têm a chancela de poema parece que já entraram noutro quintal. eu gosto de transitar entre quintais. fiz um livro de poesia, o sangue por um fio, que foi das coisas mais absorventes que fiz nos últimos anos.

musicaria algum desses poemas?
nenhum. não é que não possam ser musicados, mas não foi esse o intuito. têm outra música interior. o tempo deles é diferente. na minha cabeça foram outra viagem. o processo mental de criação foi diferente. foi muito um processo de iluminações do subconsciente.

e a escolha das palavras?
também é diferente. foi tudo muito burilado até chegar ao âmago da questão. aí sim, é poesia. se é boa ou má, outros que julguem. e sim, as minhas letras também são. não tenho qualquer problema com isso.

uma letra pode ser só uma arquitectura de palavras sem um sentido?
pode, absolutamente. gosto muito dessas construções mais abstractas ou aleatórias, embora não seja o que eu faço. eu uso sentidos, que podem ou não ser narrativos.

escreve muito sobre o amor.
sempre vivi o amor e gosto de traduzi-lo em palavras. há pontes e pontos de sensibilidade meus que transitam para o que escrevo.

 

jose.fialho@sol.pt