sem prazo
há dias, foi publicada uma notícia insólita no diário de notícias, que ninguém comentou. uma mulher de ponte de lima, hoje com 62 anos, suspeitava de que um certo homem pudesse ser seu pai e quis investigar. o caso foi para tribunal e a defesa do homem alegou que o prazo previsto pela lei para a investigação de paternidade tinha caducado. segundo percebi, se uma pessoa não quisesse saber até aos 28 anos de idade (dez anos após a maioridade) quem era o seu pai, não teria hipótese legal de alguma vez querer saber nem ver reconhecida a paternidade no caso de descobrir. o caso foi para o supremo tribunal de justiça, que declarou que a dita lei era inconstitucional. os «direitos de reserva da intimidade da vida privada e familiar» do investigado não pesaram como «os direitos à identidade pessoal, à integridade pessoal» da investigante. o stj está de parabéns por privilegiar «os direitos fundamentais fundantes da pessoa humana» em detrimento da «intimidade» do alegado pai. como se os filhos (e os pais) não fossem para sempre. já temos problemas suficientes em saber para onde vamos. é justo que quem queira saber a verdade sobre de onde veio, o possa fazer sem prazo.
o país na gastronomia
as sete maravilhas gastronómicas de portugal foram eleitas. são elas a alheira de mirandela, o queijo serra da estrela, o caldo verde, o arroz de marisco, a sardinha assada, o leitão da bairrada e o pastel de belém. admito que fiquei desapontada com as escolhas. tínhamos tanto e tão bom por onde escolher e acabámos por eleger pratos que não representam o melhor da nossa criatividade gastronómica. excepção feita à alheira de mirandela, ao queijo da serra e ao pastel de belém, que requerem trabalho e conhecimento na sua elaboração, as restantes escolhas não parecem estar à altura da nossa excelente gastronomia. o arroz de marisco? apreciadores à parte, é óbvio que não chega aos calcanhares de um bacalhauzinho à gomes de sá. além do mais, sempre me pareceu um prato de desperdício e bazófia: «temos tanto marisco que até o comemos com arroz». e o que dizer da sardinha assada? talvez que é uma dádiva divina. mas não fizemos nada para a tornarmos gastronomicamente estimulante. só a pusemos a assar. o leitão da bairrada vai pelo mesmo caminho da lei do menor esforço, lamento dizer. fica a milhas do elaborado coelho à caçador. não premiaram a simplicidade: só a preguiça.
ganhar o ano
não é a primeira vez que somos confrontados com notícias sobre a entrada de alunos nas universidades com média negativa. somos agora alertados para outra realidade: a dos que entram para a faculdade sem sequer terminar o 12.º ano. a edição da semana passada do sol dava conta da extravagância legal que permite a inscrição de um aluno na faculdade sem ter concluído o liceu. aspectos legais incompreensíveis à parte, o motivo desta autorização é o receio de os alunos ficarem desmotivados por «perderem o ano». há, então, que evitar o ‘ano perdido’ a todo o custo. mesmo que isso implique uma falsa ‘recompensa’ pelo trabalho que não foi realizado. entendo que é errado encarar o chumbo como um ano perdido. pelo contrário, é uma oportunidade importante para perceber o que correu mal e como se pode melhorar. é a ocasião ideal para rever o que não se compreendeu e para estudar o que não se estudou na altura. não é o fim do mundo. pode até ser o momento para saber que rumo tomar. mas chamam-lhe o «ano perdido» em que os alunos «ficam parados». e é esta abordagem negativa à adversidade que provoca inquietações num processo que não é simples. nem tem de ser.
falar de doenças
não há conversa que dê mais prazer ao bom povo lusitano. as doenças que temos e as que podemos vir a ter se não deixarmos de fumar, beber, comer, ocupam horas inteiras nos cafés ou ao telefone. entre a realidade e a hipocondria (ela própria uma doença), deliramos com histórias com as quais criamos empatia. mesmo os que por hábito e educação não falam sobre o tema, tremem com a notícia de que uma prima de uma amiga de uma vizinha foi a operar a um braço e saiu de lá com uma pinça esquecida dentro do próprio corpo. o horror vivido por estranhos é sentido por nós como se fôssemos os protagonistas da cena macabra. qualquer hipocondríaco foi ‘de facto’ o protagonista do horror. os outros passam a mão pelo próprio braço. aliviados por estar tudo bem, procuramos histórias parecidas no nosso catálogo privado de doenças. às tantas, a conversa passa a ser uma competição sobre quem tem mais doenças e quem sofre mais. e no meio dos pedidos extremos de empatia humana: «a luz branca existe, mas deve ser aquela luz intensa do hospital». perante a fasquia elevada ao além e a explicação seca, resta o silêncio. nunca falha. é a melhor maneira de mudar de assunto.
satisfação
suzanne moore escreve no guardian sobre duas atitudes relativamente às compras que condena e das quais exorta a que nos distanciemos. a primeira é a teoria generalizada de que as mulheres vão às compras para se distraírem e que a folia acaba por custar caro às próprias ou a alguém. moore apresenta o seu caso de mulher alérgica a todo o tipo de compras, desde a comida à roupa, passando pelos móveis. as compras não a descansam nem resolvem as suas aflições. além de não considerar a actividade calmante e terapêutica, também não compreende o consumo como um acto de patriotismo. moore ataca a ideia de a economia ter de ser financiada pelo consumismo exacerbado e aponta que foram precisamente os excessos que levaram a dívidas impossíveis de pagar. há carteiras de senhora que custam mais do que o salário de um ano inteiro de uma enfermeira. e têm longas listas de espera. mas este nosso mundo sempre foi tolo. na verdade, o ciclo vicioso das compras é alimentado por si próprio. a compra não é a satisfação de um desejo, mas apenas a semente de um novo desejo por concretizar. o problema do mundo actual é velho: é nunca estar satisfeito. por mais que compre.