Equinócios e Solstícios

Inscrever o limite da dívida na Constituição de um país é uma opção bem complexa.

circunstâncias

deve inscrever-se o limite da dívida na constituição?

a história do constitucionalismo tem muitas situações destas: tentar que as constituições garantam que não volte a suceder o que aconteceu no passado.

a lei fundamental de 1976, por exemplo, proíbe as organizações de ideologia fascista porque os constituintes, na sua grande maioria, assim classificaram o regime autoritário que imperou com oliveira salazar e marcello caetano.

como se sabe, não estendeu essa proibição a todas as organizações que preconizem a instauração de regimes totalitários. optou por falar somente das organizações fascistas. porquê? exactamente porque era o passado que tinha como causa de quase todos os males do país.

outro exemplo: a constituição de 1911 estabelecia, no seu artigo 40.º: «são inelegíveis para o cargo de presidente da república:

a) as pessoas das famílias que reinaram em portugal».

porquê? porque se está a falar da constituição do regime que derrubou a monarquia, em 5 de outubro de 1910.

aliás, talvez para disfarçar a discriminação da norma anterior, acrescentava-se uma alínea que também proibia a candidatura nos seguintes casos:

b) «os parentes consanguíneos ou afins em 1.º ou 2.º grau, por direito civil, do presidente que sai do cargo, mas só quanto à primeira eleição posterior a esta saída».

como se sabe, há vários exemplos históricos desse tipo de ‘sucessões eleitorais familiares’ em república, embora sejam mais frequentes em épocas posteriores.

caso mais curioso é o ‘trauma’ da constituição de 1933: os partidos políticos. mas, em vez de os proibir, o texto escolhe outra via: ignora-os.

na respectiva sistematização, há títulos e artigos sobre a nação, sobre os cidadãos, sobre a família, sobre as corporações morais e económicas, mas sobre partidos, nada.

foi a reacção à instabilidade da i república e à responsabilidade dos partidos políticos na caótica sucessão de governos, fenómeno herdado das últimas décadas da monarquia e agravado depois da revolução republicana.

redundâncias

não se pode ligar o texto constitucional ao ciclo económico

recordo, entretanto, outros artigos de outras constituições.

art.º 145.º, parág.º 22, da carta constitucional de 1826: «a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses é garantida pela constituição do reino, e também fica garantida a dívida pública».

art. 26.º, n.º 5, da constituição de 1911: «compete privativamente ao congresso da república regular o pagamento da dívida interna e externa».

o que se pretenderá, desta vez, que fique escrito na constituição? só poderá ser sobre a dívida pública. julgo que ninguém pensará em inscrever um limite ao endividamento global da economia. e só a dívida pública externa? claro que não – também a interna. mas o que deverão fazer estados como a irlanda em que a dívida externa é fundamentalmente privada?

é que, mesmo sendo privada, pode acarretar níveis de endividamento da economia absolutamente insustentáveis. nomeadamente para o sistema financeiro.

qualquer pessoa mais versada com estes temas entenderá a dificuldade de estabelecer um limite para a dívida pública.

até porque qualquer valor que seja indicado – para cima, por exemplo, dos 20% – poderá ser entendido como um estímulo constitucional à contracção, pelo estado, de responsabilidades superiores aos recursos disponíveis. porque é assim que se cria dívida.

será, aliás, interessante assistir aos debates entre as diferentes forças políticas sobre o valor desse limite constitucional. uns dirão 25%, outros 40%. alguém dirá 50%?

parece óbvio que qualquer construção normativa, neste domínio, deverá essencialmente remeter para a lei ordinária. é o que manda a prudência. a sabedoria constitucional espanhola, pouco dada a constituições muito programáticas ou detalhadas, assim parece estar a fazer.

e portugal, que sabe bem o tempo que se perde com a inserção no texto constitucional de limites que lá não deviam constar, mais obrigação tem de ser cauteloso nessa matéria.

quantos debates se fizeram sobre os limites materiais de revisão? recordam-se? só faltava agora uma revisão constitucional por cada ciclo económico menos previsível!

exorbitâncias

há valores que não precisam de estar escritos

se a constituição de 1911 tinha as referidas cautelas com as pessoas de famílias de monarcas, as seguintes, também republicanas, já não incluíram norma equivalente.

são preceitos datados. também o facto de a carta constitucional de 1826, com os seus actos adicionais, e a constituição de 1911 falarem da dívida, tem razões históricas objectivas.

como bem lembra o livro de joão césar das neves as dez questões da crise, houve várias falências das contas nacionais durante o século xix.

portugal ficou numa situação de penúria com o período das invasões francesas e da ida da corte para o brasil, seguidas de guerra civil; e teve falências várias, igualmente, durante o conturbado liberalismo. em 1901 negociámos um empréstimo bem complexo, por cem anos, que só acabou de ser pago no início deste século xxi.

não é, pois, por acaso que surge este movimento. dei exemplos e razões nacionais, mas o fenómeno da utilização da constituição para sublimar traumas colectivos não é exclusivo nosso.

como várias vezes aqui tenho escrito, é hábito nacional entretermo-nos com debates exaltados e empolados sobre temas cuja importância e furor mediático se desvanece mais cedo do que tarde.

agora, parece que a nossa realidade de muitas épocas da nossa história recente contagiou a união europeia: como não sabem o que hão-de fazer com tão grave crise, querem resolvê-la, também, na constituição.

o que fica escrito não significa que eu seja contrário a uma norma desse tipo.

enunciar um princípio nada tem de censurável, mas há valores que não precisam de estar escritos. assim acontece com esse dever de responsabilidade colectiva pelos encargos contraídos.

talvez seja mais atendível esta preocupação se a norma disser que quem governa um país tem de orientar as suas decisões pelo critério de não transferir para gerações futuras as inerentes responsabilidades.

a crise não se resolve ao lado. resolve-se no centro da tempestade.