Kissinger e a China

Henry Kissinger é um dos mais interessantes protagonistas e cronistas da segunda metade do século XX.

destino singular o deste judeu alemão, nascido em fürth em 1923, emigrado a tempo e horas (1938) para os estados unidos e naturalizado americano em 1943. voltou em 1945 à alemanha, no exército de ocupação. o seu compatriota de itinerário paralelo (o católico fritz kramer) descobriu-lhe o talento, encorajou-o a estudar e a doutorar-se. o que aconteceu em 1954, em harvard.

kissinger, na sua tese, ocupou-se da restauração europeia depois das guerras napoleónicas, centrando-se no congresso de viena e no chanceler metternich. ao sair da guerra mundial, optou por esta época também de fim do ciclo das guerras da revolução e do império.

nos estados unidos, os intelectuais e académicos não têm – fora os romancistas de sucesso – grande prestígio e estatuto social. a não ser que se tornem os gurus ou conselheiros de alguém importante.

kissinger teve essa sorte: primeiro esteve no círculo dos rockfeller e depois passou para richard nixon, que leu o seu livro sobre política externa e armas nucleares e o levou para a casa branca, como conselheiro para a segurança nacional em 1969. em 1973 passou a secretário de estado.

kissinger chegou a pequim, pela primeira vez, em julho de 1971. a sua missão era a reconciliação china-estados unidos. o seu interlocutor foi chu-en-lai, o inteligente e sofisticado n.º 2 de mao tsé-tung. chu acabara de escapar da revolução cultural, uma iniciativa sinistra do grande timoneiro que deixara o caos no país.

em1972, kissinger conseguiu levar nixon à china e a mao. foi uma mudança radical na geopolítica mundial: consumava-se a ruptura rússia-china. e moscovo, cercada, amadurecia para a détente.

kissinger e nixon tinham percebido que o nacionalismo ia ser a grande força ideológica da segunda metade do século xx.

os chineses, vítimas desde a guerra do ópio de humilhações e agressões dos europeus e dos japoneses, queriam acima de tudo defender a sua independência. e acreditavam que os delírios transformistas e revolucionários passariam com o desaparecimento de mao.

foi assim. um discípulo de chu, que ele protegera e salvara dos guardas vermelhos – deng-xiau-ping – traria a vaga reformista a partir de 1976. mantendo a liderança monopartidária, deng ia abrir a economia e moderar a brutalidade do comunismo chinês. a china tornou-se a segunda economia mundial e catapultou quatrocentos milhões de cidadãos para uma classe média inimaginável nos tempos de miséria e terror do maoísmo.

é a história destes anos que kissinger conta no seu livro sobre a china.

fala também do antes – da história da china até à república e a 1949. e faz, como se esperaria, algumas perguntas sobre o futuro: continuará o crescimento económico? a sua interrupção não trará uma profunda crise e ruptura internas? qual será o futuro da china e das relações com os estados unidos? e a democracia não porá termo à estabilidade?

o estilo é o de um académico com uma formação de realismo histórico, e uma escrita elegante e interessante.

o livro, não tendo surpresas, traz algumas revelações.

já é menos criativo quanto ao futuro, talvez por não querer incomodar os seus amigos chineses de quarenta anos. além de passar a esponja sobre as violências do maoísmo e os seus custos humanos, traça um futuro mais pacífico, no quadro de uma comunidade do pacifico, china-eua.

esta visão radiosa é capaz de irritar os realistas, como o branqueamento ou passagem rápida sobre a repressão concentracionária de 1949 a 1976 é capaz de irritar os humanitários.

mas é um livro a ler.