A década do iPoder

As Torres Gémeas tinham desabado há pouco mais de um mês quando a Apple lançou o primeiro iPod. Cumprem-se dez anos em Outubro. O mundo tecnológico não voltou a ser o mesmo.

os ipad2 que a apple disponibilizou para portugal voaram das prateleiras em poucas horas. e o mesmo aconteceu um pouco por toda a europa. já era esperado que assim fosse. a expectativa que se gera em torno dos novos lançamentos da empresa de steve jobs é enorme e há sempre uma legião de consumidores ansiosos por levar para casa o mais depressa possível os novos ‘igadgets’ – ipad, iphone ou ipod. não é à toa que o britânico guardian escreve que 2011 deverá ser o ano em que a apple roubará a liderança àexxonmobil na lista das empresas mais valiosas domundo.

e tudo começou em 2001. foi há 10 anos que a apple iniciou uma verdadeira revolução no mundo da tecnologia, com o lançamento do primeiro ipod. para michael bull, um professor da universidade de sussex ouvido pelo guardian, o leitor de mp3 da apple foi o primeiro ícone cultural do século xxi. «roland barthes argumentava que as catedrais eram a forma icónica da sociedade da idade média. mais tarde, na década de 1950, os automóveis ocuparam esse lugar e no início deste século foi o ipod».

mas nem a apple inventou os ficheiros mp3, nem o ipod foi o primeiro leitor de mp3 do mercado. a pré-história de toda esta transformação começou em 1977, quando o matemático alemão karlheinz brandenburg iniciou os primeiros estudos para compressão de música em pequenos ficheiros. o sucesso não foi imediato e os resultados satisfatórios surgiram apenas nos anos 90. foi em1991 que brandenburg conseguiu, em conjunto com dieter seitzer, um professor da universidade de erlangen, construir o algoritmo que tornou possível o mp1. em 1994 era ‘descoberto’ o mp2 e, em 1996, chegava o primeiromp3.

não tardou muito até surgirem os primeiros leitores portáteis. o pioneiro, com uma capacidade de 32 mb, foi o mpman f10, desenvolvido por uma companhia sul-coreana, a saehan, e colocado no mercado em 1998.

foi ainda com os leitores de mp3 na primeira infância que a apple tirou da cartola o ipod, com 5 gb de memória. o lançamento aconteceu no dia 23 de outubro de 2001, quando o mundo ainda procurava compreender o que tinha acontecido a 11 de setembro.

steve jobs, que regressara à apple havia pouco tempo, explicou então o porquê da aposta num mercado estranho à companhia. «nós amamos música e é sempre bom trabalhar em alguma coisa de que gostamos. o mercado- -alvo é enorme, não há fronteiras e não existe um claro líder de mercado. até agora ninguém encontrou a receita certa para a música digital».

a mistura de ingredientes tinha começado meses antes, em fevereiro, quando o telemóvel de tony fadell, um engenheiro de 32 anos, tocou. do outro lado da linha era jonathan rubinstein, o responsável pelo departamento de hardware da apple. «não revelei aquilo em que ele iria trabalhar. até chegar à minha porta não tinha qualquer ideia sobre o que ia fazer», contaria anos mais tarde o agora reformado rubinstein. fadell, mesmo sem saber do que se tratava, aceitou o desafio. e o que lhe pediram foi um leitor de mp3 que estivesse pronto a ser comercializado pelo outono desse ano. reunida a equipa de engenheiros, fadell deitou mãos à obra e desenhou o ipod. a cereja no topo do bolo seria a pequena roda táctil no centro do leitor, que permitia aceder a qualquer ficheiro em apenas três cliques – um conceito que maravilhou steve jobs.

o nome surgiu depois e o padrinho é vinnie chieco, um dos publicitários contratados pela apple para estudar a estratégia de lançamento do produto. chieco explicou que assim que viu o leitor branco da apple se lembrou do filme de stanley kubrick, 2001 odisseia no espaço (1968) e da célebre frase «open the pod bay doors, hal». hal era o maléfico computador de bordo da nave discovery eva pod. o i veio do imac. e pronto, a receita estava concluída. ao ipod clássico seguiram-se, durante os últimos dez anos, as suas variantes e novidades, como o nano, o shuffle ou o touch.

tozé brito, ex-executivo das editoras universal music e da bmg e actual membro da administração da sociedade portuguesa de autores, comprou o seu primeiro ipod em nova iorque, em 2001, poucos dias depois do lançamento. para o também músico e compositor é inegável que o mundo da música mudou com o aparecimento dos ficheiros e dos leitores de mp3 e que um dos principais actores nessa transformação foi o ipod. «já havia muitos leitores digitais, mas a grande vantagem do ipod é a ligação directa com o itunes. o ipod foi o grande passo em frente por aparecer ligado a um site legal de venda de música online. e é de facto um gadget altamente apetecível e fantástico em termos de funcionalidade», diz, emconversa com o sol.

para francisco vasconcelos, patrão da valentim de carvalho, também é claro que há um antes e um depois do ipod, mas o seu olhar não é tão abonatório. «o itunes é responsável pela esmagadora maioria das vendas digitais, mas isto não quer dizer que o ipod tenha resolvido os problemas da indústria musical, muito longe disso. a política da apple para a música foi terrível. impuseram as regras que queriam e forçaram a indústria a fazer coisas a que não estava habituada, como baixar preços para introduzir a música mais facilmente no mercado. houve muitas coisas que não foram boas e que acabaram por atrasar o abraço que a indústria tinha de dar ao mundo digital. é uma história de sucesso, mas também de equívocos. as vendas no itunes são legais, mas a faixa legal da música digital é muito curta», explica ao sol o responsável pela editora, sublinhando que espera, contudo, um futuro muito diferente. «acredito que estes produtos da apple sejam a pré-história da música digital. acredito que os telefones venham a ser a chave de tudo. que a música esteja numa nuvem qualquer e que os telefones funcionem como uma espécie de comando de acesso a toda a nossa livraria musical. mas tudo isto envolve imensos problemas. é preciso fazer a reforma dos direitos de autor e dos direitos conexos, que são instrumentos legais com 100 anos ou mais e que não estão adaptados a este novo mundo».

francisco vasconcelos chama ainda a atenção para outras questões que o preocupam. a primeira relaciona-se com a qualidade do som. «perde-se muito com a passagem de música para o iphone ou para o ipod. para mim, que fui criado a tentar conseguir o melhor som possível, é dramático verificar que a qualidade do som que é oferecido às pessoas está a baixar». a esta preocupação junta-se outra, no âmbito da saúde. «estamos a criar uma futura geração de surdos, com o fenómeno dos headphones. dentro de 20 ou 30 anos vamos lidar com um sério problema de saúde».

é indiscutível que o ipod virou a apple de pernas para o ar e revolucionou o mercado dos leitores de mp3. mas, com o nascimento do iphone (2007) – que também funciona como ipod –, a sua popularidade foi afectada. e depois veio ainda o ipad, em 2010. «é um brinquedo fantástico. tenho internet à mão em qualquer lado, tenho os emails sempre à mão e ainda tenho aplicações fantásticas, que me permitem recolher qualquer tipo de informação de forma muito rápida. e, mais uma vez, estamos a falar de um negócio legal, de um negócio onde os criadores de conteúdos são remunerados. vejo filmes e leio livros no ipad. estamos a falar de acesso a cinema, a literatura e a música. ficamos de facto ligados a esta cadeia que começa no mac e que passa pelo ipod, pelo iphone e pelo ipad. e a interactividade entre todos estes suportes é total. em termos tecnológicos, de rapidez e de eficácia é a melhor coisa que eu conheço», acrescenta tozé brito.

o mundo mudou. foi há apenas 32 anos que a sony lançou owalkman – o primeiro dispositivo a alterar por completo os hábitos do consumo de música, permitindo levar os ídolos para a rua em cassete.

jose.fialho@sol.pt