‘No dia seguinte, às vezes, sinto-me passada a ferro’

Fátima Campos Ferreira. Licenciou-se em História e deu aulas, mas sempre pensou em jornalismo. Diz que não seria a mesma jornalista sem a formação académica que teve. Há nove anos que apresenta o Prós e Contras. Nasceu em Abril de 1958. Diz que a vida é feita de prós e contras, que não imagina a…

quais são os prós e contras do ‘prós e contras’?
[risos] o programa começou em 2002, a 19 de outubro. faz agora nove anos.

em substituição do ‘gregos e troianos’, apresentado por júlia pinheiro.
o gregos e troianos era um programa de entretenimento. e era feito por uma produtora espanhola e vendido à rtp em séries de 13 episódios. quando o doutor almerindo marques chegou à televisão decidiu acabar com ele, mas a administração percebeu que ainda havia seis ou sete programas, que já estavam pagos do ponto de vista dos meios técnicos. para não se perder o dinheiro e aproveitar esses meios decidiu-se fazer um programa de informação sobre as questões prementes do país.

e convidaram-na.
e eu disse que sim, que ia tentar. o primeiro programa foi sobre a produtividade dos portugueses. na altura, estava na agenda a falta de produtividade aliada à falta de competitividade da economia nacional.

a realidade não mudou muito…
não mudou nada. fiz esses seis programas para gastar os meios e, depois, foi-me perguntado se queria continuar. eu, que tinha gostado da experiência, disse que sim. até hoje. é um programa que criou raízes na sociedade. é um fórum alargado de cidadania, que problematiza caminhos e estratégias para os grandes problemas nacionais. não é obrigatório tirar conclusões absolutas – não é esse o intuito –, mas, em casa, cada espectador desenvolve um espírito crítico e tira as suas próprias conclusões do debate.

é um fórum consequente?
o melhor exemplo de que os programas são consequentes é o aeroporto da ota. tenho para mim que o prós e contras foi um fórum decisivo para que a opinião pública entendesse que a ota não seria a melhor localização. as pessoas lembram-se desses debates sobre a ota como se lembram dos debates sobre a interrupção voluntária da gravidez ou sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. há uma consciência de cidadania que nasce no prós e contras e que é útil à sociedade.

mas já houve momentos de peixeirada…
claro que houve um ou outro momento difícil de gerir, mas foram poucos. e, para um jornalista, esses momentos também são desafiantes, desde que não se ultrapassem determinados limites de bom-senso e de boa educação. e, de facto, nunca se ultrapassaram. os meus convidados sempre me respeitaram. tenho esse orgulho. apesar de alguns momentos difíceis – como aconteceu com o major valentim loureiro ou com outros políticos –, os protagonistas nunca passaram das marcas.

em teoria, um jornalista, ao informar, deve abster-se de dar opinião sobre os assuntos. sente que a sua, por vezes, passa?
um jornalista, de certa forma, tem o mesmo papel do que um historiador. é um historiador do imediato. mas, tal como não há objectividade pura em história, ela também não existe no jornalismo. claro que há regras e códigos deontológicos, mas, ao mesmo tempo, há também a essência do jornalista, a sua maneira de estar, a sua forma de ser, o seu estilo. essa é, como eu digo, a zona de risco. é aí que nós arriscamos. é aí que eu arrisco. e arrisco porque também me parece que é assim que podemos marcar a diferença. temos de ser nós próprios e manter a naturalidade. tenho de estar ali com as minhas qualidades e com os meus defeitos. a vida é feita de prós e contras e é nesse balanço que crescemos e evoluímos. corro o risco de ser eu própria. e corro esse risco em função do interesse público. o facto de me expor com verdade ajuda as pessoas a compreender a verdade dos assuntos que estamos a tratar. corro riscos deliberadamente em função do interesse público.

já se estampou?
provavelmente, já tive muitos estampanços, mas não imagino a minha profissão sem riscos. a forma como estou na profissão vai muito para lá do politicamente correcto. além das regras da profissão, nos debates também está a minha forma de ser.

e a sua opinião também está?
não é a minha opinião, porque eu nunca dou a minha opinião. nunca ninguém percebeu, por exemplo, se eu era a favor ou contra a interrupção voluntária da gravidez.

é possível que, mesmo sem notar, seja mais agressiva ao colocar questões às pessoas com quem não concorda?
creio que não. uma das características do prós e contras é o facto de eu não deixar nunca que alguém perca a dignidade ou seja humilhado no debate.

ao fim de nove anos sente-se saturada?
é verdade que os debates são muito desgastantes e sei que tenho muitos apoiantes e muitos detractores. mas isso, como costumo dizer, vem no pacote, é inerente à exposição pública. ao longo destes anos, tenho tido alguns momentos difíceis. o desgaste de montar semanalmente o programa é grande e aguentar o debate em cena nem sempre é fácil. às vezes, no dia seguinte, sinto-me esgotada, passada a ferro, como se tivesse corrido uma maratona. ponho tudo de mim ali. desse ponto de vista, é esgotante e ao fim de algum tempo necessito de parar, nem que seja uma semana. mas eu gosto muito daquilo. gosto da performance do debate, de montar aquela orquestra e de a conduzir, de pôr os vários ângulos em confronto. e gosto de pensar que daí surge algo que serve o público. gosto de pensar que posso ajudar a sociedade através do programa. por isso, não, não estou cansada nem saturada.

não tem saudades de fazer outras coisas?
eu vou fazendo outras coisas. nos últimos tempos, por exemplo, tenho feito algumas entrevistas.

estava a pensar em reportagens.
há muito tempo que não faço, mas não é possível fazer tudo.

e tem saudades?
tenho. as reportagens, quando nos pomos muito nelas, às vezes são como filhos, que vemos crescer desde o início. e a reportagem é a coluna vertebral do jornalismo.

jose.fialho@sol.pt