As ruas árabes

Não é fácil para os profanos ou simples curiosos destes fenómenos, perceber o que realmente se está a passar e vai passar no mundo islâmico, com a rua árabe.

depois da famosa revolta do deserto que o inesquecível t. e. lawrence levantou contra os turcos, estas revoltas são diferentes: são urbanas, são internas, contra governos do país e não contra um suserano imperial como os otomanos.

a vaga começou, não se esqueça, por um anónimo vendedor ambulante tunisino que, humilhado, se imolou pelo fogo. não há uma identidade ou uma uniformidade nestes movimentos nem nas suas soluções ou conclusões. na tunísia um autocrata cleptocrata e a sua família foram afastados pela rua, sem resistência; no egipto, mubarak tentou resistir, mas os seus generais indicaram-lhe o caminho da saída. já na líbia, foi necessária a intervenção estrangeira, europeia e americana, para decidir a guerra que está a levar ao fim de kadhafi.

na argélia, o poder do fln, apoiado pelas forças militares e policiais, aguentou-se. em marrocos, as reformas vieram de cima, e foram dissuasoras de mais contestações. situação paralela é a da jordânia onde se mantém a dicotomia beduínos – palestinianos, mas o rei abdalah fez reformas, que parecem ter sossegado os contestantes. a síria vive uma situação paralela à da líbia, e a minoria dominante alauita parece disposta a bater-se em redor da família assad. vão acabar por perder, mas é outra história. o governo do bahrein foi salvo pelos sauditas. o iémen continua instável e é duvidoso, até, que o país fique unido.

convém também ver as posições tomadas por certos estados que, discretamente, ou menos discretamente vêm intervindo na contenção e enquadramento destas situações. é o caso da arábia saudita e da turquia.

ancara, graças ao sucesso económico-social do governo de erdogan e desvanecida a miragem europeia, procura, com razão, ter um maior papel na região médio-oriental. o conflito verbal e diplomático com israel trouxe-lhe a simpatia da ‘rua árabe’. os turcos seguem de perto a situação do egipto. uma das soluções esperadas do mosaico pré-eleitoral é que os militares, juntamente com a ala moderada dos irmãos muçulmanos e parte dos quadros provinciais do antigo partido no poder, consigam fundamentar um governo. os sauditas têm ajudado financeiramente o cairo. mas os motins desta semana, provocados pela violência contra os cristãos coptas, podem prejudicar o clima das eleições.

a casa de saud, que foi o grande aliado do ocidente na guerra fria (e decisiva para a queda da união soviética, pela baixa do preço do crude), vai ajudando os conservadores, mas tem consciência de que ela própria terá de mudar.

para um melhor entendimento destes movimentos, das suas origens, do seu significado e dos cenários de evolução é boa a leitura do livro que nuno rogeiro acaba de publicar (na rua árabe) e que foi apresentado por luís amado na biblioteca do iep da universidade católica.

o nuno seguiu o mundo islâmico com um espírito de português do (nosso) grande século, o xvi, na pele do jornalista de ideias e do terreno. as suas observações são originais e procura muito mais entender o fenómeno que preconceituá-lo ideologicamente. luís amado, ex-ministro dos negócios estrangeiros experiente e sensível ao tema islâmico, tem ideias e pistas de interpretação sobre estas realidades que merecem ser ouvidas.

ambos concluem que, perante a rua árabe, e perante o fenómeno dos povos islâmicos, marginalizados e humilhados, não poucas vezes, pelos ocidentais, por israel e pelos seus próprios governantes, é necessária uma atitude radicalmente nova que nos encaminhe para uma ‘aliança de civilizações’ com esse intrigante e difícil mundo árabe, evitando o ‘choque de civilizações’ de huntington que pode levar ao fim da civilização.