Sandra Felgueiras: ‘Dou por mim a chorar’

Felgueiras não é o seu último nome, mas jamais o mudaria: «É a minha vida». Sandra já foi confundida com a mãe pelos colegas em directo. Diz que talvez seja a emoção que marca o seu trabalho. A coordenadora e apresentadora do noticiário da RTP2, Hoje, começou como estagiária na SIC. Foi jornalista do Expresso,…

já se sente mais pivô do que repórter?
em duração de trabalho, na verdade, sou mais pivô do que repórter. mas na alma, sou muito mais repórter porque é o que me corre no sangue. ainda no fim-de-semana tive a oportunidade de ir para a rua, e foi um certo respirar de alívio. o trabalho de pivô é muito aliciante, porque tem-se uma noção da realidade no seu conjunto, mas também tem uma função muito limitada – está-se muito fechada e eu sou uma mulher do terreno. sinto-me mais confortável na procura da notícia, a aborrecer as pessoas, a telefonar às fontes… isso faz falta.

mas o que dá notoriedade na tv é a projecção que um pivô tem.
identificou-se na nossa cultura que ser pivô é o expoente máximo da carreira, talvez porque em termos de remuneração era mais aliciante – não para quem está a começar, mas para os que há mais tempo estão nessa função. mas não acho que um jornalista chegue ao topo de carreira porque se torna pivô. até acho muito redutor pensar assim. lá fora, nem a christiane amanpour nem o anderson cooper se fizeram como pivôs.

mas era uma ambição sua?
nunca pensei vir a ser pivô. mas se me perguntar se estou a gostar, respondo que estou a adorar. quando fui para a faculdade, e quando comecei a pensar em ser jornalista aos seis anos, nunca tinha colocado essa hipótese. eu gostava era de escrever histórias. quando fui para o expresso, contente fiquei da vida e ainda tremi quando tive de optar entre o expresso e a rtp. corre-me nas veias o espírito de ser inquieta, de despertar consciências, de fazer perguntas. ser pivô ou não ser pivô foi uma oportunidade que me surgiu e que agarrei.

apresenta o hoje há um ano e vai ter em breve um programa seu. esta presença em antena não lhe causa dissabores?
dissabores na redacção já tive mais no passado do que no presente. todas as redacções, como todas as empresas, têm os seus problemas. têm pessoas que se entendem melhor e outras que se entendem pior.

a diferença é que a televisão vive de egos…
é isso mesmo. uma televisão, vivendo de egos, tem sempre esses dissabores exponenciados, porque as pessoas pensam que a escolha de um, preterindo o outro, significa mais visibilidade e depois questiona-se: ‘então, onde é que eu fico’. mas era o que estava a dizer há pouco, dissabores já tive mais no passado. hoje em dia não me sinto nada constrangida na rtp.

muitas mulheres da sua idade já casaram e tiveram filhos. é uma mulher de carreira?
hipotequei o meu futuro a esse nível, talvez colocando a carreira à frente. mas não acho que tenha chegado aos 34 anos sem estar casada e sem filhos apenas por isso. tenho um passado sobre o qual não quero voltar falar, mas que é público, que me empurrou para esta circunstância. tive de decidir muitas coisas que não eram da minha vida, que eram da minha família, e isso provocou um adiar de outras coisas. não estarei a mentir se disser que só comecei a viver para mim há quatro anos. para trás, vivi sempre amargurada a tentar resolver situações que não sendo minhas colocavam em jogo a minha vida e a dos que mais amo.

alguma vez pensou em mudar de nome?
nunca. jamais colocaria essa hipótese. tenho muito orgulho em ser quem sou.

mas felgueiras não é o seu último nome.
não, não é. e assino felgueiras por uma razão engraçada. no meu ano, havia imensas sandras. éramos umas quatro ou cinco e distinguíamo-nos pelo último nome. mas como a minha mãe era professora da escola e conhecida no meio escolar, eu tornei-me a sandra filha da fátima felgueiras. foi assim que fui crescendo. não fui eu que escolhi o nome, foram as pessoas que mo deram.

felgueiras não é um peso grande para trazer às costas?
é quem sou. é a minha vida e não tenho vergonha nenhuma dela. tenho a consciência muito limpa. tenho a certeza absoluta que nem legal nem moralmente infringi qualquer regra dentro e fora do meu país, dentro e fora do meu coração. por isso, nunca mudaria de nome. se o fizesse, estaria a prescindir de algo que faz parte de mim.

alguma vez lhe chamaram fátima em trabalho?
muitas vezes. aconteceu até em directo. durante a vinda do papa bento xvi a portugal, estávamos em fátima, éramos dezenas de repórteres e havia imensas passagens de directos uns para os outros. a certa altura, a rosário salgueiro [subdirectora de informação] passou para mim e disse: ‘agora, fátima felgueiras…’. eu fiquei uns segundos calada e da régie disseram-me: ‘fala, fala que é para ti’. ainda agora na manifestação [dos indignados], houve pessoas que me diziam: ‘ó fátima, venha cá’.

o que a distingue dos outros jornalistas?
nunca gostei de me comparar com ninguém. nem tenho tempo para isso.

ainda agora dizia que na manifestação as pessoas chamavam por si. os espectadores conhecem-na e não é certamente pelos seus lindos olhos…
perguntando-me dessa maneira, vem-me à cabeça o que eu acho ser o meu maior defeito profissional. sou extraordinariamente emocional. tenho muita dificuldade em ir para o terreno e desligar-me da situação em que as pessoas se encontram. acabo por viver um pouco o problema delas, e acabo por dar um pouco de emoção às reportagens. torná-las mais próximas daquilo que eu senti no momento em que presenciei as histórias. essa facilidade de transmitir com sentimento o que os outros, por estarem fragilizados, não conseguem, talvez dê um resultado diferente ao meu trabalho.

dá por si a chorar em reportagem?
dou por mim a chorar imensas vezes. e tenho uma dificuldade imensa em me esquecer das histórias, em chegar a casa à noite e não sonhar, em não pensar que deveria ter ficado a ajudar. uma das cenas mais chocantes foi estar num orfanato na índia, com os miúdos a agarrarem-se a mim e eu só ter vontade de os levar. e pensar que naquele instante não queria ser jornalista, mas estar numa missão humanitária em que pudesse salvar nem que fosse uma criança. pouco depois deu-se o terramoto no haiti e vi o anderson cooper – que respeito em termos profissionais – a descrever uma criança soterrada, sem ser capaz de retirar uma pedra. aquilo deu-me uma revolta no estômago…

o que é que teria feito no lugar dele?
teria ido tirar a criança de lá com todas as minhas forças. antes de ser jornalista sou um ser humano. e um ser humano não é um abutre que se aproveita da desgraça alheia. é óbvio que somos pagos para transmitir informação, mas isso não anula o que é a nossa integridade. eu era a primeira a avançar e era capaz de sugerir ao ‘câmara’ para fazer o mesmo.

como se imagina daqui a dez ou 15 anos? vai ser uma nova judite sousa ou uma apresentadora perdida nos canais por cabo?
daqui a dez ou 15 anos não sei o que estaremos a fazer. na situação em que o país está, é difícil termos o dom para adivinhar o futuro. não gosto de me comparar com ninguém, tenho muita estima e admiração pessoal e profissional pela judite, mas vejo-me a ser eu própria. espero que daqui a 15 anos não me tenha perdido no caminho.

nem esteja perdida num canal por cabo?
gostava de estar num canal generalista, já não digo público, porque não sei se lá chegaremos.

francisca.seabra@sol.pt