antes de começarmos esta conversa estava ao telefone com a sua mãe. fala com ela todos os dias?
todos. a nossa relação é muito gira. não é aquela relação do filho da mamã ou mãezinha do filho único. não permiti que isso acontecesse.
são muito amigos?
sim. o que é muito bom para ela, porque faz parte dos meus projectos todos. e está com o meu grupo de amigos, ia connosco para ibiza, vamos jantar fora, de férias… é amada por todos. é muito engraçado.
está a fazer o herman2011 na rtp, onde estreou também moeda de troika. deu um espectáculo no tivoli e é lançada na próxima semana uma biografia sua. porquê tanta coisa ao mesmo tempo?
há uma altura da nossa vida em que percebemos que o tempo é um bem precioso e muito escasso. sou fã do documentário josé e pilar, um monumento inspirador. saramago diz que ser velho é sentir o final de cada dia como uma perda irreparável. apesar de não me considerar velho, já sinto o final de cada dia como uma perda irreparável. tenho necessidade de aproveitar o tempo o mais possível.
tem uma força motriz como pilar?
tenho dentro de mim. é uma característica de filho único. começo e acabo em mim. se vivesse sozinho numa ilha deserta tinha capacidade de me distrair. a solidão é um vício. tenho uma casa em azeitão, gosto de lá estar completamente sozinho, rodeado apenas de plantas e irracionais, porque não tenho espaço para nenhum racional ao pé de mim. é na solidão que me reformato, que crio.
foi essa necessidade que fez com que não se casasse e não tivesse filhos?
sem dúvida. ter filhos é sinónimo de perda de independência. a ideia de a vida não acabar em mim e eu ter que ser responsabilizado por outras vidas para além da minha é um pânico absoluto.
esta biografia não é escrita por si. a ideia foi sua?
não, nasceu de uma quantidade de circunstâncias às quais fui alheio. só comecei a ajudar tardiamente. é divertido. mas a grande autobiografia, vou escrevê-la com a idade do mário soares, quando não tiver medo de nada.
por que não agora?
não posso, até porque me aconteceriam coisas horríveis a seguir. portugal é um país perigosíssimo.
em que sentido?
não digo porque tenho medo.
a última década foi passada na sic e não lhe correu muito bem. regressou à estrada há três anos. foi uma necessidade financeira?
não acredito em alguém que diga que a coisa financeira não importa. há pouco tempo, em londres, estava num jantar chiquíssimo e, à mesa, estava um dos tipos que trabalha com a madonna. que disse: temos rapidamente que voltar à estrada porque começa a não haver dinheiro. ela teve de voltar à estrada. os u2 têm que voltar à estrada, o elton john tem uma vida de tal forma despesista que trabalha quase todos os dias.
neste regresso fez muitos espectáculos para empresas e, até, um casamento.
foi giríssimo. era na penha longa. pensei: ‘isto deve ser uma espécie de duquesa de alba, alguém extraordinário, cheio de dinheiro’. preparei-me para o espectáculo mais chique que se possa imaginar. quando cheguei, era o casamento dos donos de uma empresa que faz tendas para casamentos. nem usei o palco, peguei no microfone e andei pelas mesas a cantar o ‘saca-rolhas’, a ‘canção do beijinho’, a ‘canção do estebes’, o ‘serafim saudade’.
não se embaraça, então, por fazer casamentos ou festas de empresas…
não, de maneira nenhuma.
sempre foi conhecido por ser esbanjador, gostar de luxos, gastar muito dinheiro em coisas muito caras. ainda é assim ou mudou com a idade?
tive que resolver uma série de sonhos que tinha. há coisas que vale a pena fazer uma vez, para saber como é. ia a montecarlo e via as pessoas fazer a vida de rolls, iam pôr os miúdos à praia, iam almoçar, jantar. fiz a experiência. em 1991 comprei um rolls-royce novo, azul-escuro, lindo. usei-o como se fosse um renault 5. quis saber como era andar de avião privado e, durante uns tempos, fazia a minha vida de avião privado. não quis morrer sem ter a sensação de ter um barco de 20 metros, tive, e percebi que era ruinoso.
era um modo de vida…
quis saber como era estar no st. regies na mesma suite onde a julie garland viveu. ou chegar a los angeles e ficar no mesmo sítio que a madonna aluga. aproveitei o facto de conseguir fazer dinheiro com o meu trabalho para realizar uma quantidade de caprichos. mas não preciso de regressar a eles para ser feliz. não preciso de um barco grande. tenho agora uma lancha normalíssima, mais condizente com o meu nível de vida.
vendeu o bentley, o rolls-royce, o iate…
vendi os carros porque estavam velhotes. não se justifica ter um carro daqueles com vinte anos porque só dá problemas. hoje em dia não voltaria a andar de rolls-royce. seria patético.
não os vendeu pelo dinheiro?
não, porque nunca deixei de ter a capacidade de facturar muito com o meu trabalho. passei por essas experiências giríssimas, são memórias que ficam para sempre e histórias deliciosas para contar. mas não voltaria a dar seis mil euros por noite por um quarto de hotel em nenhuma circunstância. nem gastaria 300 mil euros num carro. a felicidade não está aí. está em ter uma pessoa da família doente e poder pô-la no melhor hospital. felicidade é ir almoçar ou jantar com alguém de quem se gosta e não ter que dispensar entradas. e é maravilhoso ter um espectáculo em maputo e não ir em turística.
ainda preserva esses luxos…
sim, mas esbanjar não. agora, há coisas herdadas desse tempo que adoro ter, como relógios que hoje jamais compraria.
cresceu num meio socialmente privilegiado. sentiu necessidade de provar alguma coisa?
não, a classe alta com que me dava era frugal a gastar dinheiro com os filhos. andávamos vestidos da mesma maneira, recebíamos as mesmas mesadas. mas há um momento específico da minha vida que vai de encontro à pergunta. quando chega a altura de todos terem carro, aos 18 anos, o meu pai achou que não fazia sentido dar um carro ao menino. fiquei apeado. resolvi a coisa de forma elegante e, sem ninguém dar por isso, comecei a dar explicações. tornei-me o melhor explicador da zona. passado um ano juntei dinheiro para comprar um alfa romeo, um carro chiquíssimo. fingi que me tinham posto o carro nas mãos. fiz um brilharete, tinha o melhor carro de todos.
por que não quis assumir que era comprado com o dinheiro do trabalho?
para não dar o ar ridículo do desgraçado que tinha andado a galgar as avenidas novas de um lado para o outro, aos oitenta escudos de cada vez, para comprar um carro. achei uma piroseira. nesse momento percebi que tinha uma grande capacidade de ganhar dinheiro com o meu trabalho. nunca mais deixei de fazer isso.
como?
quando começo a fazer espectáculos compro um jaguar. depois compro o meu primeiro apartamento, na costa, e pouco tempo depois a quinta em azeitão. habituei-me a fabricar dinheiro. tenho uma capacidade de facturação fora do comum. não só por competência, mas por cumprir bem. tornei-me o melhor explicador. era o único que chegava a horas.
o que faziam os seus pais?
a minha mãe era dona de casa. o meu pai uma vedeta da gestão. primeiro na área das cortiças, depois nos mármores. era extraordinariamente competente. mas não gostava de dinheiro. podia ter sido um homem riquíssimo mas não estava para se ralar. em primeiro lugar estava o seu tempo livre, a sua paz, a família. estamos em desacordo. o dinheiro não merece o primeiro lugar mas, na pole position, pode estar melhor situado.
acha que traz felicidade?
não. mas acho que a ausência dele potencia a infelicidade, o que é diferente.
tinha uma relação próxima com o seu pai?
bastante. mas ele era, como eu, uma entidade autónoma. um intelectual fechado nas suas leituras. antes de morrer começou a aprender russo.
lutava pela sua aprovação?
não, ele era muito leve nesse aspecto. só não o foi em relação à minha ida para o parque mayer. quando lhe disse que ia, ficou doente. quando deixei crescer o cabelo também não achou piada.
e quando disse que não ia para a universidade e que ia ser artista?
fizemos um pacto. acabei a escola alemã com uma média razoável. se, ao fim de dois anos, as coisas não me corressem bem, ia para munique estudar televisão e cinema. só que dois anos depois já eu andava de jaguar e dava-lhes almoços em frente à praia no meu apartamento da costa. portanto, ficou decidido.
quando se deu o 25 de abril tinha 19 anos. era politizado?
nada. se se abrisse o meu cérebro na altura, parte substancial estava ocupado pelo herbie hancock, outra pela carly simon, outra pela carole king, outra pelo james taylor e a parte maior pelo frank zappa. e depois havia um bocadinho para comer, beber, fazer cocó, chichi e estudar.
e os seus pais?
o meu pai era um ex–juventude hitleriana, um órfão da geração hitler, com tudo o que isso acarreta: um fascínio absoluto pelas coisas boas da ascensão dos nacionais-socialistas e um desgosto enorme de perceber que se transformaram em criminosos. os amigos dele eram judeus, esteve quase para casar com uma judia antes de casar com a minha mãe. ficou politicamente órfão, mas sempre à direita. mas sem racismo, censura, autores proscritos. a minha mãe não tinha qualquer interesse além das coisas típicas que as senhoras gostam: um bom romance, um filme, as amigas, o chá, paisagens bonitas.
como recorda o colégio alemão?
do melhor. mesmo o que me parecia mau na altura, agora parece-me notável. tive alguns professores hiper-exigentes. hoje percebo que essa exigência me formatou e me foi essencial.
chumbou um ano, de propósito, para mudar de turma. não tinha amigos?
eu era super dotado artisticamente, era o ídolo das meninas. mas aos 13 anos é suposto andarmos a jogar à bola com os nossos amigos, não ter as meninas à nossa volta doidas para nos ouvir contar histórias. ganhei o ódio dos meus amigos nessa altura. fui ter com o director e disse: ‘tenho que mudar de classe, se não enlouqueço. já arranjei amigos na classe abaixo, inventei uma personagem normal, gostam de mim. posso chumbar?’. chumbei e a partir dos 14 anos voltei a ser feliz.
tinha muitos amigos?
vivi sempre em círculos apertados. ficava fechado com as namoradinhas que ia tendo. os meus pais achavam que eu era um garanhão sexual prematuro. ninguém ficava fechado no quarto tanto tempo com uma menina. ouvíamos música, estudávamos, víamos televisão, conversávamos. no meio, namorava-se um bocadinho, dentro dos parâmetros da época. era muito de me concentrar em petit comité. ainda sou.
guarda amigos dos tempos de infância?
é difícil. não tenho as rotinas da minha idade, não tenho netos, não jogo na bolsa, não tenho offshores. o universo de preocupações da minha geração passa-me ao lado. preocupa-me saber se tenho champanhe gelado para dar ao mexia no espectáculo de sexta-feira ou se me chega o pedal wha-wha para a guitarra até lá.
considera-se um homem de direita ou de esquerda?
se fosse governante tinha de fazer o partido da esquizofrenia ou da bipolaridade. seria implacável do ponto de vista da segurança, tipo singapura. arranjava um sistema que responsabilizasse de forma violentíssima os que estão dentro do sistema e não seguem as regras. e seria implacável na defesa dos direitos dos que merecessem. todos os que lutam, em prol da sociedade, ricos ou pobres, iam ter o apoio incondicional do estado. um tipo que movimenta milhões de euros em operações financeiras merece pagar fortunas, um tipo que vive obcecado em criar novos postos de trabalho, por mais milionário que seja, merece que lhe digam que no ano seguinte não vai pagar impostos. o nosso estado é patético nesse aspecto. protege criminosos inimputáveis, destrói pessoas úteis. é disfuncional.
(actualizada às 14h59)