essas obras valeram-lhe a justa fama de ser (com albert camus) um dos poucos homens de esquerda que entendeu e denunciou o carácter terrorista do comunismo. não apenas do estalinismo, como insinuaram alguns, mas de toda a sociedade construída segundo os cânones do socialismo científico. isto porque nas duas obras há um fundo de antropologia política que não engana. animal farm é uma fábula política sobre a natureza humana, nineteen eighty-four uma utopia negativa sobre o construtivismo social.
o sistema era o de estaline, a versão conhecida por orwell, mas sem estaline já funcionara e funcionaria (com lenine e a partir de 1956). e quando gorbachov abandonou o terror, desmoronou-se.
no ensaio orwell e o 1984, publicado na revista futuro presente em 1984, jorge borges de macedo chamava a atenção para a importância das microtiranias, lembrando que orwell não as previra, já que, na sua futurologia geopolítica, o terror assentava em grandes unidades. na verdade, depois da queda das grandes unidades (a urss) ou da sua reforma (a china popular), cuba, a coreia do norte, a líbia, a síria ou o camboja muito teriam a dizer sobre a organização do terror de inspiração socialista.
hoje quero aqui lembrar um livro de ensaios de orwell que para mim tem especial importância. trata-se de the observer years, uma recolha de artigos e recensões literárias que orwell foi escrevendo para o jornal entre 1942 e 1948. na recensão tapping the wheels ficam bem claras as marcas do pensador político cruzado com o moralista e o jornalista.
sem se deixar seduzir pelo ‘inglesmente correcto’, orwell, que sabe bem a diferença entre os dois conceitos de democracia (governo da maioria e protecção das minorias), afasta-se das definições rotineiras de ‘democracia inglesa’ ou ‘à inglesa’: «se democracia significa governo popular, é absurdo considerar democrática a inglaterra. é uma plutocracia assombrada pelo fantasma do sistema de castas». e mais adiante: «em qualquer país há duas coisas de importância fundamental: a estrutura económica e a história».
apesar dos riscos de algum determinismo sócio-cultural, esta observação parece-me vital na actual conjuntura europeia: a história dividiu e ainda divide a europa, um mosaico de estados que se afirmaram e identificaram uns contra os outros no conflito e na resistência. a única identidade colectiva europeia consistente foi a do cristianismo, identidade essa que os construtores e redactores dos textos fundamentais da união europeia recusaram expressamente.
a estrutura económica da ue, ou melhor da eurolândia, é também desigual: dois estados em condomínio hegemónico – alemanha e frança (os «animais mais iguais que os outros», diria orwell); outros grandes mas em grandes dificuldades – itália e espanha; e três nações em crise – grécia, irlanda e portugal.
adebilidade financeira deste terceto levou já à dependência e ao pedido de resgate. a indecisão do directório, que não decide nem dirige, vai-se revelando de cimeira em cimeira, de medida em medida, sem que se encontre ou aprove um mecanismo de garantia (deveria ser o bce) que dê confiança aos países, às empresas e aos cidadãos da zona euro. somos também, e cada vez mais, «uma plutocracia assombrada por um sistema de castas».