Maria João Avillez: ‘Soares metia-se comigo por eu gostar de Cavaco’

Tem obra publicada sobre Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro. Muitas horas de conversa e de entrevista com os três. Soares nunca deixou de lhe responder a uma pergunta: «É um homem tão livre que não lhe ocorre dizer que não responde». Quando era adolescente passou-lhe pela cabeça ser actriz, mas o chamamento do…

álvaro cunhal, sá carneiro e mário soares. são os três rostos da democracia portuguesa?
do princípio da democracia com certeza que são. mas sá carneiro morreu prematuramente e não sabemos o que teria sido a sua colaboração para o país. o doutor soares é uma referência que permanece em absoluto.

o primeiro livro que escreveu foi a biografia de sá carneiro, ‘solidão e poder’, em 1982. chegou a conhecê-lo de perto?
conheci-o muito de perto nos anos de 1978, 1979 e 1980. hoje, trinta anos depois, com todos os documentos que entretanto foram disponibilizados, claro que faria um trabalho muito mais profundo. aquilo é quase uma biografia cinematográfica, mas da qual eu me orgulho muitíssimo.

no contacto com algum deles conseguiu passar para lá da figura pública?
consegui absolutamente com o doutor soares, consegui muito bem com o doutor sá carneiro e houve alguns momentos da minha relação profissional com o doutor álvaro cunhal em que escorregámos para o lado humano.

no caso de sá carneiro, diz que nunca se irá esquecer da casa de infância.
sim, a casa da rua da picaria, no porto. aí entrevistei a mãe dele, que era uma personagem absolutamente inesquecível. e o cenário também era absolutamente inesquecível.

porquê?
era uma mãe que tinha visto morrer três ou quatro filhos. pareceu-me um cipreste, com uma força para lá de tudo. hirta. fria. sincopada. lúcida. frontal. uma personagem feminina fabulosa, sozinha naquela casa enorme e austera, que tinha sido dela, do marido e de sete filhos. é impossível esquecer. todos os dias agradeço a deus trabalhar no que trabalho. tenho conhecido gente formidável, que de outra forma jamais conheceria.

‘conversas com álvaro cunhal’ é um livro de entrevistas, mas não só…
sim, tem muito mais informação porque eu ia muitas vezes à sede do partido – primeiro na rua antónio serpa e depois na soeiro pereira gomes – avistar-me com ele. o livro é um somatório entre o dito e o não dito.

era um homem afável?
era um homem interessante. levei 20 anos na expectativa de um dia ver aquelo mito desabar, como que por milagre, diante dos meus olhos, mas nunca aconteceu. sempre disse apenas o que quis, como quis e quando quis. de qualquer forma, apesar de tudo, tivemos muitas conversas para lá da política. conversas sobre humor, sobre pintura, sobre futebol…

nunca se desentenderam?
muitas vezes. uma vez, numa entrevista para a televisão, disse-me uma coisa que ficou uma espécie de máxima para mim: ‘você faz as perguntas que entende e eu dou as respostas que quero’.

do que ficou a conhecer dele, sente que poderia ter sido um ditador de esquerda?
era um ditador e era de esquerda. se as coisas tivessem corrido mal, o doutor cunhal teria sido certamente um ditador implacável.

afirmou, de forma taxativa, que ele era um ditador. porquê?
porque era. porque não havia liberdade no pcp. porque ninguém dizia o que queria. o comunismo é uma ditadura. não me parece que seja necessário explicar que dois e dois são quatro.

pergunto-lhe se as características pessoais dele lhe indicavam isso.
tinha frieza e implacabilidade suficientes para ser um ditador.

era um homem bom?
seria pouco sério da minha parte dar uma resposta. quem sou eu? e também não o conheci o suficiente para poder responder. posso dizer que várias vezes o encontrei animado por bons sentimentos quando a conversa não era sobre a política. mas quando a conversa era sobre política não havia bons sentimentos. havia só um caminho que era implacável. a razão pela qual eu fui aceite tantas vezes na sede do pcp era o facto de o doutor cunhal perceber que eu estava nisto a sério. comentou várias vezes os livros que fiz com o doutor soares e pôs-se sempre numa posição muito negativa e muito pouco simpática em relação a ele. mas nunca pôs em causa o meu rigor e o meu profissionalismo. sempre soube separar o meu trabalho da personalidade de soares, que ele detestava e desprezava.

não tinha respeito por soares?
mais depressa tinha esse respeito por sá carneiro. sá carneiro era o inimigo absoluto, mas reconhecia que estava ali uma têmpera e um carácter.

não reconhecia isso em soares?
não digo que não reconhecesse, mas os sentimentos negativos eram mais fortes. eram quase de desprezo.

e de soares em relação a cunhal?
o doutor soares é olímpico com o doutor cunhal.

olímpico com sinceridade?
sim, penso que sim. depois de o ter vencido, o assunto ficou encerrado.

quantas horas de entrevista com mário soares foram necessárias para compor os três volumes que publicou?
não contabilizei, mas foram dois anos de trabalho exclusivo. e com um detalhe importante: ele era presidente e eu era um intervalo na agenda.

também se desentenderam?
às vezes irritava-se, mas não há memória de não ter respondido a uma pergunta. para ele, isso é algo impensável. é o contrário de cunhal. é um homem tão livre que não lhe ocorre dizer que não responde. também me lembro que se metia muito comigo por eu gostar de cavaco. ainda hoje.

é muito diferente fazer uma entrevista a um político e a um não político?
é. quando estou a entrevistar um político visto automaticamente a pele de advogada do diabo. tenho entrevistado pessoas que admiro genuinamente e nada nas minhas perguntas é a feijões. nas outras entrevistas permito-me um registo mais lento, mais impressionista e mais intimista.

jose.fialho@sol.pt