‘Nasci para ser cozinheiro’

Em 1997, o chef Ljubomir Stanisic mudou-se para Portugal e apaixonou-se pelo país, pelas gentes e pelos sabores. Essa paixão ganhou agora forma de livro, em Papa Quilómetros.

este livro é a declaração de amor de um jugoslavo a portugal?
essa declaração já fiz há muitos anos. este livro é, sobretudo, uma viagem pela gastronomia portuguesa. é uma viagem dedicada ao país, aos portugueses e aos seus produtos. eu e a minha mulher, a mónica franco, que é uma das autoras do livro, há muito que queríamos fazer um livro, algo ligado a portugal, mas sem ser pretensioso. queria fazer o livro nos sítios de que mais gosto em portugal. queria viajar pelas localidades e lá contactar com pequenos produtores, pescadores, apanhadores de percebes, agricultores, pastores… apanhava os produtos na natureza, aquilo que existia à nossa volta. a partir daí surgiam as receitas e as histórias do caminho e das pessoas.

essas pessoas tornaram-se amigas? fazem-se amigos à mesa?
a mesa é o sítio onde se resolve tudo, principalmente na cultura portuguesa. à volta da mesa há reuniões familiares, discussões, pazes, soluções… a maior parte das pessoas que encontrei ao longo do caminho tornaram-se amigos, que vou visitar ou me vêm visitar. hoje em dia, muitas dessas pessoas são também fornecedores dos meus restaurantes – algumas apanham cogumelos, zimbro, funcho do mar, percebes… com as dificuldades que o país está a passar, temos de encontrar oportunidades de trabalho. não é preciso plantar as sementes para colher, há produtos que estão na natureza e é só apanhar, como os cogumelos – que são dos melhores do mundo e são apanhados por espanhóis e italianos, quando podiam ser apanhados pelos portugueses.

temos pouco amor pelo que é nosso?
não acho que seja pouco amor pelo que é nosso… há uma coisa que me incomoda muito, mas que existe em muitas culturas, não só em portugal, que é o sentimento de que o que é estrangeiro é que é bom. o que tento defender é que olhemos mais para o nosso umbigo e menos para fora. na ilha do farol, junto a olhão, por exemplo, as pessoas sublinhavam que havia um cheiro especial, mas não sabiam do que era. um dia saí para as dunas para apanhar ervas e, quando voltei, dei a cheirar aos habitantes do farol o que tinha apanhado. disseram logo que cheirava à ilha. o cheiro da ilha é simplesmente erva-do-caril, coisa que importamos da índia, mas que temos abundantemente.

percorreu seis mil quilómetros. houve algo que o tivesse surpreendido especialmente?
tive muitas surpresas e aventuras, como pisar as brasas e queimar os pés a assar um leitão ou acordar às cinco da manhã para ir para hortas na altura do orvalho quando as folhas cheiram mais. foi um livro feito com bastante divertimento e amor.

e em termos das receitas que descobriu, há alguma em especial que o faça ficar com água na boca?
desde que cheguei a portugal, em 1997, que a cozinha alentejana me marcou – o coentro, o alho e o pão. mas também nunca vou esquecer os sabores da minha terra natal. aliás, o meu trabalho são os sabores, não os posso esquecer! trabalho através das memórias que tenho dos sítios por onde passei, como áfrica, china, europa. são memórias que aplico nas minhas receitas. mas qualquer coisa boa faz-me ficar com água na boca. sou viciado em comer, como muito. acho que ser um bom garfo faz parte da nossa profissão, se não formos somos uma máquina. mas este livro não conta só as receitas. conta a história de um jovem calimero que saiu da jugoslávia sem dinheiro à procura de si próprio, que tentou formar-se, trabalhar e encaixar-se no mundo. e depois o livro também tem receitas.

este livro influenciou a abertura do seu terceiro restaurante?
mal acabei o último capítulo do livro abri o nacional 100 maneiras, que, como o nome indica, tem a ver com os produtos nacionais e portanto, sim, tem a ver com o livro.

como concilia tantos projectos?
não estou sozinho, tenho uma equipa de 70 pessoas que me ajudam a construir o sucesso do 100 maneiras. sozinho apenas conseguiria estar numa caravana a fazer pregos e bifanas! claro que ando com a minha vespa a correr entre os três sítios para confirmar a qualidade dos produtos! é duro, mas gosto do que faço.

o programa masterchef ajudou-o a tornar-se uma estrela?
não. antes do masterchef já tinha restaurantes cheios. não nasci para ser famoso, nasci para ser cozinheiro. a minha espada e o meu escudo são o tacho e a panela, por isso estou na cozinha. com o masterchef despi-me à frente do público e o meu nome ganhou uma imagem. a única coisa que o masterchef fez foi isso. era cozinheiro desde sempre, cozinhava bem e continuo a cozinhar bem. faço o meu trabalho, não me vou iludir com a fama.

raquel.carrilho@sol.pt