À sombra da bananeira

O diário i é um jornal verdadeiramente democrático. No dia da greve geral, na pág. 2, o director António Ribeiro Ferreira escrevia: «Bom dia, Portugal. Bom trabalho para os que ainda podem trabalhar. E um muito bom dia para todos os que não podem trabalhar porque não têm emprego».

Mas na pág. 13 – o número do azar –, um colaborador de nome José Neves opinava: «Um dia assim é uma oportunidade rara. Uma oportunidade para perdermos a vergonha de dizer que não gostamos de trabalhar. O trabalho é uma fonte de infelicidade. Trabalhamos, mas não por vontade própria. Trabalhamos porque não temos alternativa. Possamos ir buscar os géneros onde os houver – que os há – e não trabalharemos».

Onde será que José Neves irá «buscar os géneros»? Haverá um sítio onde eles existem sem ninguém precisar de trabalhar? José Neves conhece um lugar onde os géneros caem do céu?

Há uns meses, na apresentação de um livro sobre a gestão de recursos humanos, fiz o elogio do trabalho. Contra uma certa opinião preguiçosa segundo a qual o trabalho é um mal necessário, defendi exactamente a ideia contrária: o trabalho é o modo através do qual o ser humano se realiza. É através do trabalho que cada indivíduo deixa uma marca sua na passagem pelo planeta. E é também através dele que dá o seu contributo à sociedade.

Nessa cerimónia, interpelei os presentes: «Será através do ócio que os homens se realizam? Os seres humanos realizar-se-ão a não fazer nada? O objectivo da humanidade será passar a vida inteira à sombra da bananeira?».

Não é certamente. Quando passo um fim-de-semana de barriga para o ar gozando o dolce far niente, sabe-me bem na altura – mas quando chega o domingo à noite experimento uma desagradável sensação de vazio.

Quando, pelo contrário, olho para trás e vejo trabalho feito, posso sentir-me cansado mas fico feliz. Plantei mais uma árvore, fiz uns desenhos para entregar ao carpinteiro ou ao pedreiro, arranjei uma torneira estragada ou substituí um interruptor avariado, pintei umas cadeiras ou envernizei um móvel – enfim, fiz coisas mais ou menos importantes, mas não desaproveitei o tempo.

E julgo que isso não acontece só comigo. Qualquer pessoa gosta de ver a obra feita. Um mestre-de-obras que me fez alguns trabalhos no Alentejo perguntou-me, no fim de uma obra, se podia levar lá a família. Disse-lhe naturalmente que sim. E um dia ele lá apareceu com a mulher e as filhas.

Eu deixei-o sozinho e fiquei a observá-lo de longe.

– Vêem? Isto foi feito desta maneira… – explicava ele, orgulhoso.

Por ali andou durante longo tempo. E eu vi como se sentia valorizado perante a mulher e as filhas pelo facto de saberem que ele fizera aquele trabalho. Gostaria mais aquele homem de não trabalhar, de não ter nada para mostrar?

Mesmo nas férias uma pessoa pode fazer coisas úteis. O meu pai defendia que o ‘estar de férias’ não significa necessariamente ‘não fazer nada’. Para ele, fazer férias era, sobretudo, fazer coisas diferentes daquelas que fazia durante todo o ano. Mudar de hábitos, «dépayser», como dizia.

Esta mudança de hábitos é saudável, porque física e mentalmente põe a trabalhar zonas diferentes do nosso corpo. Mas muita gente não encara as férias assim. Entrega-se simplesmente ao ócio – e fica deprimida quando volta a trabalhar.

Nas empresas por onde tenho passado encontro sempre pessoas que no regresso de férias me dizem: «Que chatice, voltar ao trabalho!» ou, mais suavemente, «As férias foram óptimas mas infelizmente já acabaram», ao que eu respondo invariavelmente: «Você gostaria de passar a vida toda de férias?».

Ninguém ignora que há uns trabalhos mais interessantes do que outros. Não é naturalmente agradável estar 8 horas metido numa fábrica a repetir incessantemente o mesmo movimento, ou passar a madrugada a correr de porta em porta despejando caixotes do lixo.

Mas mesmo essas pessoas sentirão que estão a fazer qualquer coisa pela comunidade, que estão a fazer qualquer coisa de útil, que estão a fazer um trabalho que é necessário fazer.

Pior do que isso, muito pior do que um trabalho desagradável, é não ter trabalho nenhum. Porque aí um indivíduo sente-se inútil, sente-se um peso-morto, sente que a sociedade não precisa dele – e que ele não tem nada para dar à sociedade.

De vez em quando vemos nas ruas das cidades indivíduos ainda relativamente novos a andar no passeio de um lado para o outro, de passo incerto e aspecto inseguro, sem saberem bem o que fazer ou como ocupar as mãos: são desempregados. E essas visões são terríveis.

Percebe-se que muitos deles, além de se sentirem inúteis, desnecessários, marginalizados, postos de parte, talvez achem que os outros olharão para eles e os verão como uns párias que vivem à custa dos que trabalham.

Um antigo colega meu que decidiu reformar-se antecipadamente dizia-me que «as tardes custam muito a passar». Fixei esta frase – «custam a passar» – e fiquei a pensar nela. Tínhamos trabalhado juntos e como era possível estarmos já tão distantes? É que eu queria (e continuo a querer) exactamente o contrário: que o tempo não passe. E procuro aproveitar todos os minutos para fazer mais isto ou mais aquilo.

O meu colega quer que o tempo passe depressa, que o dia chegue ao fim. E para quê? Para vir outro dia igual, que ele quererá que também passe depressa. E com isto, sem o perceber, está no fundo a desejar que a vida chegue depressa ao fim. Será isto o que devemos querer?

Não fazer nada, não ter objectivos, deixar que o ócio tome conta de nós – indo «buscar os géneros onde os houver e não trabalhando», como dizia o outro – é um disparate. O trabalho tem um lado de sacrifício, de esforço – mas alguma coisa se consegue sem esforço?

O objectivo do ser humano é realizar-se, deixar uma marca, contribuir para si e para a comunidade. E isso é uma corrida contra o tempo. O tempo é inimigo disto – porque não pára, foge-nos. Se o queremos aproveitar, temos de o agarrar.

Há trabalhos melhores do que outros, sem dúvida. Mas todos são necessários. E todos, no fim, nos levam a pensar que fizemos alguma coisa por nós e pelos nossos semelhantes. Mau, verdadeiramente mau, é não termos nada para fazer, é ninguém precisar do nosso trabalho. É chegarmos ao fim da vida e não termos nada para mostrar dessa passagem.

O que torna as pessoas infelizes não é o trabalho – é acharem-se inúteis.