o orçamento do estado (oe) é um documento com inquestionável importância política. acompanhado das grandes opções do plano, ele traça e define os contornos e os traços referenciais que pautam a acção do governo. necessariamente discutido e aprovado na assembleia da república, impõe-se durante o período da sua vigência.
a sua construção, ao implicar opções políticas, não é neutra, portanto. e, em período de crise financeira grave, nacional, europeia e internacional, este documento tem que incluir medidas que a combatam. medidas essas, fortemente condicionadas, em termos de metas, pelo programa de assistência financeira que cumpre ao país honrar. esse condicionamento, porém, não esgota a margem de liberdade do governo no sentido de fazer escolhas, tudo isto interpretado à luz do momento de excepcionalidade que vivemos.
o oe 2012 espelha, portanto, as opções ideológicas do governo e essas opções contêm sinais contraditórios. tais sinais exprimem-se, designadamente, no domínio da política fiscal. senão, vejamos. e identifico apenas duas situações.
por um lado, opta-se por penalizar, especialmente, aqueles que recebem os seus proveitos – sejam salários ou pensões – através de transferências do estado, ou seja, os funcionários públicos e os pensionistas. isto porque o governo ideologicamente considera que o peso que o estado tem na economia a enfraquece por ser exagerado e, consequentemente, é preciso reduzi-lo a todo o custo. mesmo que isso signifique uma especial sobrecarga num grupo de cidadãos, mesmo que seja depressa demais e mesmo que essa sobrecarga e essa pressa provoquem rupturas sociais e económicas potencialmente graves e insuportáveis.
para além do facto de ter incidência mais gravosa sobre um grupo específico de cidadãos, esta opção é errada, pois tratar da mesma forma os vencimentos dos funcionários públicos e as pensões – quer de funcionários públicos aposentados, quer de trabalhadores do sector privado reformados – significa que o governo confunde dois papéis diferentes. é que na primeira situação o estado é entidade patronal e, na segunda, é gestor de uma carteira pública de seguros que assenta em descontos obrigatórios, fixados com base em cálculo actuarial e realizados ao longo de toda uma carreira contributiva. por outro lado, ainda, tratar da mesma forma quem está no activo ou quem é reformado é ignorar que, no primeiro caso há, pelo menos, potencialmente, um horizonte laboral pela frente e, no segundo caso, esse horizonte é praticamente inexistente.
espero que a negociação que o governo está a fazer com a banca para a integração dos respectivos fundos de pensões na segurança social não signifique a criação de um outro grupo de pensionistas que acentue o sentimento de injustiça, ou seja pensionistas que passam a estar integrados na segurança social e que terão direito aos subsídios de férias e de natal.
a segunda situação que ilustra a contradição das opções ideológicas do governo demonstra-se quando escolhe aumentar a taxa de iva aplicável à restauração de 13 para 23%.
sabemos bem que esta actividade assenta, em grande parte, em pequenas empresas, muitas vezes familiares, e que é parte integrante da prestação de serviços no turismo, sector indispensável ao crescimento da nossa economia. porquê, então, esta opção? necessidade de obter receitas a todo o custo? longe está o discurso sobre as gorduras do estado, cujo corte constituiria a panaceia para resolver todos os nossos problemas de desequilíbrio orçamental, e sobre a injustiça e o erro de aumentar a carga fiscal que alimentou os discursos pré-eleitorais da actual maioria.
desconhece o governo que, quando a carga fiscal aumenta desmesuradamente, para além daquilo que é considerado social e economicamente suportável, diminui a capacidade de cobrança pelos efeitos conjugados da recessão económica com o aumento da evasão fiscal?
não teria sido este o momento para ter estado mais aberto e mais atento às críticas e chamadas de atenção que a apresentação do orçamento suscitou, quer por parte do presidente da república, quer por parte de inúmeras personalidades públicas, designadamente daquelas que se situam na área política que sustenta o governo?
não teria sido também este o momento para investir num processo de concertação social forte e para envolver de forma mais ousada, pelo menos o principal partido da oposição que, como co-subscritor do memorando da troika, está comprometido com as suas metas?
um orçamento não é um mero exercício tecnocrático, é um exercício eminentemente político. para além das medidas que devem orientar a gestão da res publica é fundamental avaliar o seu impacto em termos da percepção que dele fazem os cidadãos. porque há dimensões imateriais – como a do sentimento de injustiça – que se intuem, e que têm consequências na vida real, na forma como reagem e se comportam os cidadãos na sua relação com o estado.
há muita margem para aceitação da austeridade mas nunca há margem para a conformação com a injustiça evitável.
como dizia einstein, nem tudo o que pode ser contabilizado conta, nem tudo o que conta pode ser contabilizado.
a execução deste orçamento suscita-me enormes preocupações, porque é ele e a sua conjuntura, no contexto nacional e internacional. as previsões da ocde, apresentadas esta semana, contribuem para a sustentação do meu receio. oxalá eu me engane, porque, em circunstâncias como aquelas que vivemos, o que verdadeiramente deve contar é o interesse nacional.