Cesária

No sábado passado, morreu Cesária Évora. A notícia chegou ceo e deu tempo para a RTP1 se lembrar de Nha Sentimento, um documentário da jornalista da casa Sofia Leite.

e fez bem porque a homenagem era ‘obrigatória’ e o filme é revelador da desarmante simplicidade da cantora cabo-verdiana, mostrando que o sucesso lhe serviu para comprar uma casa onde recebe toda a gente e um carro para dar passeios à noite pelo mindelo. mas também para mostrar que césaria não era mulher de gastar palavras, desinteressada de discutir uma música que lhe existia no peito porque sim e que fez dela uma diva de dimensão equivalente à de billie holiday, amália rodrigues ou chavela vargas.

à televisão, pede-se frequentemente que aja como bolsa de memória colectiva e que nos recorde amiúde da nossa própria vida. o documentário de sofia leite lembrou-me do meu único encontro com cesária évora, quando, em outubro de 2009, a entrevistei para as páginas deste jornal. essa forma de trocar a complexidade da vida por frases de uma simplicidade tão terrena que se tornava poética, levava-a a descrever o seu primeiro avc, pouco tempo antes, como um braço que morrera mas depois voltara à vida. quando dizia coisas como esta, reduzindo a sua saúde quase a questões temperamentais do seu corpo, a amiga e tradutora ralhava com ela, lembrando as proibições listadas pelo médico – como álcool e tabaco – e que cesária fingia não perceber, refugiando-se na desculpa de que o médico não falava a sua língua. e nisto, puxava de um cigarro, admitindo que deus lhe enviara um sinal e ela não o vira.

enquanto pôde, penso que cesária fingiu que não entendia a morte – desacertos linguísticos. só há uma explicação: o diabo da morte aprendeu crioulo.