O regresso da toupeira

John le Carré é o cronista da Guerra Fria: começou em 1963 com The Spy Who Came in from the Cold, e fechou com a trilogia The Quest for Karla de que Tinker, Taylor, Soldier, Spy (A Toupeira, em Português) é o primeiro volume.

os seus heróis contrastavam com o protótipo do espião da época – o james bond de ian fleming, encarnado em sean connery. bond era charme, tiros, cinismo, movimento, violência, sexo, gadgets. e maniqueísmo: os bons eram bons (ocidentais e cristãos) os maus eram maus (soviéticos e comunistas). os bons ganhavam e não precisavam de reflexões metafísicas para dar cabo dos maus.

le carré trouxe outra dimensão e outros heróis: a trama era secreta, ambígua, lenta até ao desfecho. o poder, a influência, a hierarquia das lealdades, os factores humanos, dominavam o jogo, passado nas cidades míticas do conflito – berlim, antes de todas – londres, moscovo, washington; até paris. e hamburgo, praga, bona («a small town in germany»).

a toupeira é uma história dessa história: control, o chefe dos serviços secretos ingleses (sis), desconfia da existência de um traidor na cúpula do serviço: só pode ser um dos seus próximos colaboradores – percy alleline, bill haydon, roy bland, peter esterhase, george smiley. um general checo, candidato a passar para o oeste, tem a identidade da ‘toupeira’. control manda jim prideaux para o contactar.

como código escolhe uma velha adivinha infantil, correspondente ao nosso ‘rei, capitão, soldado, ladrão’ – ‘tinker, taylor, soldier, sailor… spy’. cada um dos suspeitos fica com um nome de código – e prideaux deverá contactar o ‘circo’ (a sede do sis) dando esse nome.

prideaux é descoberto, ferido, preso e torturado. a operação é um desastre. control é demitido na depuração que se segue. george smiley sai com ele. smiley é um chefe, senhor de estratagemas, depositário de fidelidades e devoções. podia ser um ulisses, embora ao contrário da penélope clássica, ann, a mulher de smiley, o engane habitualmente. ele sabe, sente, ressente. pior, um dos amantes de ann é haydon.

como os desastres e falhas no sis continuam, o governo, através de george lacon, encarrega smiley de descobrir e neutralizar a ‘toupeira’. smiley monta a operação: trabalhando em safe houses, com colaboradores escolhidos a dedo, procurando fios perdidos, faz a teia para apanhar a ‘toupeira’.

em 1979, a bbc estreou uma versão televisiva d’ a toupeira em que alec guiness era um smiley inesquecível. e o resto – os cenários, a banda sonora, as cidades, também jogavam bem no conjunto.

por isso um filme, sobre um livro e uma série tão ‘conseguidos’, não era fácil. tomas alfredson, o realizador sueco, teve coragem de pegar nesta difícil tarefa. não falhou: gary oldman compôs um smiley excelente e liberto da sombra tutelar de guiness. tranquilo, corajoso, profundo, estóico, como qualquer missionário céptico. john hurt, esse grande actor secundário, faz bem control, um senior civil servant patriota, amargurado por ter deixado o inimigo portas adentro; colin firth é bill haydon, galã, entre o cínico e o desiludido.

algumas mudanças nesta versão: umas inocentes ou inócuas – prideaux vai para a hungria, em vez da checoslováquia; ricki tarr conhece irina em istambul (em vez de lisboa, como na série bbc, ou hong kong no livro).

outras mais estranhas (correcção política?): karla foi torturado pelos americanos e ficou sem unhas; e peter guillan (benedict cumberbatch), o braço direito de smiley, tem um petit ami.

de resto, temos bem de volta a guerra fria, que olhamos já nostálgicos, como a nossa guerra lá fora, como cá dentro foi a guerra de áfrica. dizem que perdemos esta (a de áfrica) e que ganhámos a outra (a fria). terá sido assim?