viver nos dias
num questionário de rua sobre os planos para o novo ano, um cidadão respondeu que tenciona viver cada dia de 2012 como se fosse natal. já que natal é quando o homem quiser, por que não levar esse desejo ao máximo e viver o dia-a-dia de acordo com os seus princípios de gratidão e generosidade? percebemos bem a vontade de viver cada dia o melhor possível, um desejo comum aos seres humanos minimamente saudáveis. mas se é para formular desejos prefiro recorrer a um poema do britânico philip larkin, não especialmente conhecido pelo optimismo. days recorda que «os dias são onde vivemos», tomando o tempo como o local comum a todos na história de vida de cada um. é neles que somos felizes e fora deles não podemos viver. o resultado apontado por larkin para quem vive fora dos dias é a vinda do médico ou do padre. chegam a correr pelos campos fora para internar ou converter os que saem do habitat recomendado. há dias de grande tristeza. e dias felizes também. manhãs melhores que tardes, tardes mais doces que manhãs. mas é na repetição das 24 horas que há que viver o que nos acontece de bom e de menos bom. faço votos para que não desperdicemos os dias de 2012.
má crítica em nova iorque
carnage, de roman polanski, foi recebido com críticas de ódio nos estados unidos. o the new york times pegou em irrelevâncias de tratamento entre as personagens (nunca se tratariam por mr. ou mrs., mas logo pelo primeiro nome) e sugeriu que a peça de yasmina reza, em que carnage se baseia, fosse apenas lida em palco, pois seria mais estimulante do que o filme. os conflitos entre a justiça americana e o realizador são bem conhecidos, o que explica a falta de pudor na antipatia, mas o que é certo é que o nyt não tem razão. carnage é um grande filme, protagonizado por quatro grandes actores (jodie foster e kate winslet estão nomeadas para os globos de ouro). além do mais, é um bom exemplo de como o cinema pode superar o teatro. no palco não seriam tão credíveis as tentativas de saída dos cowan da casa dos longstreet, por exemplo, nem poderíamos apreciar o à-vontade de alan cowan, sentado no móvel alheio de uma sala hostil. não teríamos acesso às expressões dos actores, tão ricas em frustração, ódio e violência. o desentendimento entre os filhos de ambos une estas quatro pessoas. ou três pessoas que se querem salvar e alan cowan (ou polanski), que já desistiu há muito.
agora é que é
parece que o novo ano nos apresenta a actividade da leitura como das únicas que não estão sujeitas a um aumento de preço. esta espécie de oásis livreiro que nos é oferecido pode ser uma solução neste ano difícil para quase todos. sê-lo-á para quem gosta de ler, mas também pode ser uma oportunidade para aqueles que ainda não desenvolveram hábitos de leitura. afinal de contas, pouco mais vamos poder fazer este ano além de ler uns livros e assistir a umas séries de televisão. para quem adoptou há muito este modo de vida, será a vida como dantes. o novo nicho de potenciais leitores está naqueles que estão tristes porque não têm dinheiro para ir jantar fora. jantar fora é mais caro do que comprar um livro. um livro pode livrar o leitor de um encontro enfadonho, além de ser completamente chique dizer que não pode ir ao aniversário do francisco porque tem de passar o serão com os cidadãos, de simon schama. não é caro, é uma companhia que não diz disparates e é uma boa desculpa. não sabemos que efeito terá a leitura, pois cada leitor decide sobre o que lê. não sabemos o que leva as pessoas a ler, se a educação, se a curiosidade inata. por que não os preços baixos?
pensar em voz alta
a expressão ‘pensar em voz alta’ dá muito jeito. significa, paradoxalmente, que estou a dizer o que não foi pensado. não é vinculativo, não me podem acusar de estar a dizer uma estupidez, nem podem usar esta inconfidência voluntária como se fizesse parte da minha opinião ou fosse sequer da minha responsabilidade. se digo que estou a pensar em voz alta estou, com infantilidade, a pedir imunidade, como numa brincadeira de crianças. faz sentido porque pensar é livre, e é um alívio porque é uma maneira convencional de parar a realidade sem consequências. mas nem sempre podemos recorrer desta suspensão no discurso. lembrei-me deste recurso retórico quando hugo chávez insinuou que os americanos teriam descoberto uma maneira de contaminar os líderes sul-americanos incómodos com cancro. chávez estava a pensar em voz alta, e tem todo o direito a matutar no que entender, mas as circunstâncias de estar a fazer um discurso para milhares de pessoas, transmitido em directo pela televisão, sabendo que as agências internacionais de informação o difundiriam para o mundo inteiro, não o isentam das suas responsabilidades políticas. digo eu, a pensar em voz alta.
uma história de amor
um homem italiano de 99 anos pediu o divórcio à mulher, de 96, após 77 anos de casamento, porque andou a mexer em gavetas que não lhe diziam respeito e encontrou cartas de amor que a mulher escrevera a outro homem há 60 anos. parece que há dez anos, quando eram ambos octogenários incansáveis, tiveram uma discussão, e que antonio c. (assim é referido o futuro divorciado) terá saído de casa uns dias para esfriar a cabeça. talvez a reconciliação não tenha sido bem sucedida. pelo rancor do marido, diria que dez anos não são suficientes para recuperar de uma discussão conjugal. rosa c., a mulher assim referida no processo, ainda tentou convencer o marido a ficar, mas o fogoso antonio c. não quis ouvir mais explicações. a infidelidade da mulher e a pilha de cartas guardada debaixo do seu nariz durante o casamento foram motivos mais que suficientes para decidir como se tivesse 30 anos. a mulher tinha cometido uma falta grave e ter acontecido há 60 anos era um pormenor. antonio c. é jovem ao ponto de pensar que a sua longuíssima vida conjugal afinal foi uma mentira. danada da rosa c. que lhe partiu o coração esclerosado. os italianos são tão queridos.