Viticultor: O guardião da vinha

As geadas e as baixas temperaturas deixaram a vinha despida. A folhagem caiu, as plantas estão em descanso e «é tempo da poda, de cortar tudo o que está a mais para garantir a qualidade da produção», diz Carlos Mira, 41 anos, viticultor por vocação e paixão.

tem a seu cargo 200 hectares de vinha, em três propriedades pertencentes à família e cuja produção dá corpo à conhecida marca herdade das servas. «foi um projecto meu e do meu irmão luís. quando terminámos a universidade sabíamos que queríamos dar continuidade à tradição familiar. não tínhamos dimensão para produzir vinhos em massa, mas tínhamos know-_-how para apostar na qualidade e satisfazer clientes exigentes. esse era o nosso objectivo». um sonho ousado, que ficou dois anos a marinar e está em marcha há doze, com sucesso.

no montado que era do avô, às portas de estremoz, onde antes pastavam vacas e eram cultivados cereais, os irmãos aproveitaram o declive acentuado para erguer o rústico e imponente edifício – que alberga a adega, os escritórios e o centro de enoturismo – e estender a vinha das servas, plantada em 2007. a meia hora de distância, ficam as antigas vinhas do azinhal e judia (a mais antiga, com 60 anos), que carlos supervisiona diariamente.

«está a ver estes gomos? daqui vão brotar os frutos. deixamos apenas dois gomos por talão. a parte aérea corta-se», explica o proprietário, de tesoura em riste, segurando a haste da videira. prefere a poda de cordão bilateral curto, «porque a planta fica mais equilibrada, com os braços em t». adapta-se a poda à filosofia da vinha. se o objectivo é a qualidade, tem de se deixar menos carga para que a planta canalize todo o seu vigor para os frutos. «mas depende sempre de cada cepa. se é velha, podemos puxar por ela para dar o máximo. se é nova, não faria isso».

desde o final de novembro até janeiro, há a poda para realizar mas todos os meses estão escalonados e a faina só se atrasa quando as condições climatéricas não o permitem. de janeiro a fevereiro aplica os herbicidas, de março a junho os fungicidas, em agosto controla a maturação e em setembro e outubro, realiza a vindima. a calendarização, por vezes, sofre alterações: «já aconteceu vindimar as castas de branco em agosto porque tivemos um verão escaldante».

ter picos de boa produção é fácil. «difícil é em anos menos bons manter a qualidade estável. e a nossa aposta sempre foi a constância da qualidade», garante o viticultor. como é que isso se consegue?

tudo começa na escolha do terreno, da casta e do porta-enxerto, mas também é fundamental a preparação do solo antes do plantio (que passa por rasgar bem a terra para que as raízes possam penetrar em profundidade), o espaçamento entre as cepas (cerca de um metro) e entre as linhas (mais de dois metros), a escarificação do solo nas entre-linhas durante o outono e o inverno para que as águas da chuva penetrem o subsolo (o que evita a rega no verão), a poda e tantos outros truques para controlar as pragas ou para proteger a maturação das uvas.

a preocupação com as doenças da vinha levou carlos mira a tomar medidas de prevenção. «não fico à espera que as coisas aconteçam. estou de sobreaviso e quando é preciso actuo rapidamente». por isso, não dispensa a consulta diária de quatro sites meteorológicos na internet, onde recolhe informações sobre o grau de humidade, a temperatura, a pluviosidade, a velocidade do vento, o orvalho e até as temperaturas a dois e a cinco centímetros abaixo do solo.

há seis anos investiu na sua própria estação meteorológica, instalada na herdade do azinhal, e que hoje está apetrechada com equipamento gps que permite medir «com exactidão» a humidade da vinha, a temperatura e pluviosidade, e saber «a probabilidade em tempo real» das doenças e das pragas atacarem. o equipamento veio de frança e carlos mira tem mantido intercâmbio com ivon bugaret, especialista em doenças da vinha e professor na universidade de bordéus.

para controlar pragas, recorre a vários métodos. para detectar o avanço da cicadela, também conhecida como cigarrinha verde, faz a contagem de 100 folhas: se 50 estiverem afectadas, actua preventivamente. quanto às traças, pode ter de recorrer a armadilhas com feromonas para as contabilizar. «quando é preciso, mobilizo as equipas e, em dois ou três dias, todas as vinhas são tratadas, seja feriado ou fim-de-semana».

mais do que as pragas, há algo que os irmãos, há muito, aprenderam a respeitar: a força da natureza. não esquecem a primavera em que uma geada extrema se abateu sobre um vale e dizimou por completo uma vinha da família. «é o que chamamos uma geada negra. a vinha ficou totalmente destruída, parecia queimada».

desde crianças que os dois irmãos acompanhavam os trabalhos no campo. «nascemos, fomos criados e educados na cultura da vinha e do vinho!». o bisavô materno foi um dos fundadores e o primeiro presidente de uma adega cooperativa no alentejo. já o avô paterno criou uma das primeiras empresas particulares na produção de vinhos da região. calculam que a tradição da vinha perdure há pelo menos sete gerações. nas propriedades da família foram conservadas talhas de barro, datadas de 1667, utilizadas na produção do vinho.

dividida em talhões, a recente vinha da herdade das servas tem uma selecção de 13 castas tintas e nove brancas, onde não podiam faltar touriga nacional, aragonês, syrah, alicante bouschet, trincadeira, alvarinho, roupeiro ou viognier. cada casta é vindimada separadamente e a vinificação e o estágio também são feitos sem nunca se misturarem entre si, até à fase final. os vinhos de gama superior podem ficar em estágio, em barricas de carvalho, 12 a 15 meses, findo esse prazo são engarrafados e ficam de novo em estágio, sem rótulo, nos cestos metálicos, mais 8 a 10 meses. só então são comercializados. é um processo moroso.

da última colheita resultaram 1.500 toneladas de branco e tinto e a herdade das servas ainda não está no auge da sua produção, admitem. «passámos de 20 mil garrafas para mais de um milhão». um crescimento sustentado, que responde à procura e à abertura de novos mercados. 80% da produção fica no país, 20% vai para o exterior, estando a marca presente em 16 países, desde o canadá ao brasil, passando por angola, japão ou austrália. no início de 2011 arrecadaram mais um prémio, a medalha de ouro no challenge international du vin, em frança, onde concorreram cinco mil vinhos de 35 países, o que teve «um sabor especial».

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