o país já tem críticas que cheguem e motivos mais do que suficientes para se sentir desiludido. quero, mais uma vez, reflectir sobre o funcionamento do nosso sistema de governo.
o que se espera de um presidente da república, nomeadamente na mensagem de ano novo? em momentos de crise profunda, os cidadãos de um país não esperam do seu chefe do estado que lhes diga como podem chegar a uma situação ainda pior do que aquela que se vive. esperam que lhes seja dito como chegar a uma situação um pouco melhor.
o presidente da república não é, como se sabe, o chefe do executivo.
na concepção do nosso sistema de governo, o presidente é suposto ser o primeiro e último guardião do regular funcionamento das instituições democráticas. mas isso não deve fazer dele um permanente presidente do conselho fiscal do governo em funções.
talvez existam duas maneiras de um presidente ser popular. uma, porventura mais fácil, é demarcar-se das medidas difíceis que têm de ser tomadas e distanciar-se de um governo que tenha de enfrentar tempos muito adversos. a outra, certamente mais dificil, é ser um catalisador de vontades e um mobilizador de esperanças, por muito pequenas que elas sejam.
um chefe do estado, para além da bandeira e do hino, é o símbolo, é a referência, é a ilustração máxima da continuidade da pátria para além de todas as conjunturas.
um presidente da república não pode, por isso, ser o primeiro ou o mais importante dos comentadores da actualidade política, económica ou social.
em vez de dizer, na mensagem de ano novo, que se não houver rigor, se não houver uma agenda virada para o crescimento, «a situação social poderá tornar-se insustentável e não será possível recuperar a confiança e credibilidade externa do país», deve afirmar que, com rigor e com essa agenda que certamento em breve surgirá, a situação inverter-se-á e portugal entrará no rumo da recuperação e do crescimento, mesmo que moderado.
cavaco silva também disse que «portugal é maior do que a crise que vivemos»; também disse que «este é um tempo de união de esforços»; também disse que «não nos resignamos» porque «somos um povo que se agiganta quando as adversidades são maiores e mais difíceis de superar».
só que estas frases positivas ilustram ideias já muito batidas, não tendo a frescura necessáriapara serem mobilizadoras. e quem saiba suficientemente de comunicação (como se sabe em belém) não teria nenhuma dúvida de que a parte mais negra do discurso seria a mais citada.
mensagem do ano novo precisaria de um rasgo
não se trata aqui de fazer uma análise exegética da mensagem presidencial.
e não é só no ano novo que as palavras do presidente são minuciosamente analisadas: são-no sempre, nomeadamente pela imprensa, pelas embaixadas e pelos diferentes responsáveis do sistema político português.
a questão está no facto de, numa altura como esta, um país precisar de ver a luz de um farol que possa dar ideia de que a rota que está a ser seguida pode levar a porto seguro. e de quando isso poderá acontecer.
não falo aqui na mensagem de natal do primeiro-ministro. já fiz uma, em circunstâncias muito difíceis, já ouvi muitas outras, e um primeiro-ministro está sempre noutra posição. um primeiro-ministro é o responsável máximo pelas tais medidas difíceis – e, com a descrença que há em relação à vida política, é mais difícil ver o governo como um farol. pode acontecer, mas não é fácil. de cavaco silva, numa altura como esta, espera-se que fale aos portugueses sobre o futuro de portugal com a mesma atitude de quando se lhes dirigia no tempo em que exerceu o cargo de chefe do governo. até porque cavaco silva sabe muito bem falar desse modo.
amensagem de ano novo do presidente foi equilibrada e também é importante que dê alguma voz às causas reais ou aparentemente mais esquecidas. foi equilibrada. mas o país, neste momento, para além de equilíbrio, precisa de rasgo, precisa de liderança – mesmo das convicções, dos sentimentos e das expectativas.
cavaco não deve seguir os antecessores no 2.º mandato
a liderança de um primeiro-ministro situa-se num plano naturalmente diferente.
num sistema de governo como o nosso, a liderança de um presidente é mais importante do que a de um chefe do estado em sistemas parlamentares. o presidente em portugal é eleito – e isso confere-lhe uma legitimidade muito forte. é o único órgão de soberania unipessoal – e isso acarreta uma enorme responsabilidade.
um primeiro-ministro pode fazer esse papel, mas é mais fácil tal acontecer quando o chefe do estado não é eleito e não tem uma força política própria.
ora, não sendo o chefe do estado e o primeiro-ministro a fazer um papel mobilizador, quem o pode fazer? os líderes da oposição? o presidente de um supremo tribunal? por vezes, parece que vivemos num campeonato, numa disputa para saber quem dá a pior notícia ou quem faz o discurso mais sombrio ou a previsão mais negativa. já quase ninguém suporta ouvir os profetas da desgraça.
no nosso sistema democrático, desde há quase quatro décadas, os segundos mandatos dos presidentes eleitos têm sido caracterizados por fortes divergências com os governos em funções.
tem ficado claro, pelas palavras e pelos silêncios de cavaco silva, que ele não aceita a ideia de estar inserido na tal trilogia ‘um presidente, uma maioria, um governo’. está no seu direito. não foi esse propósito que anunciou aos portugueses na campanha eleitoral para a sua reeleição. ele não é o chefe do executivo nem quer ser identificado com o governo.
mas, se está no seu direito, também temos o direito de esperar que o segundo mandato de cavaco silva seja, no que respeita às relações com o governo, diferente do dos seus antecessores. cavaco silva, enquanto primeiro-ministro, teve de suportar as presidências abertas do segundo mandato de mário soares. e o país não vivia, nem pouco mais ou menos, dificuldades como as que hoje enfrenta.
escrevi no início deste artigo, e repito, que este texto não pretende criticar cavaco silva.
trata-se de uma reflexão escrita de alguém que já sentiu, de modo muito especial, o que representa a falta de apoio de um presidente, e que já muito pensou, escreveu, ensinou e publicou sobre o sistema de governo inscrito na nossa constituição. um apelo? não. mais um voto, um desejo, uma esperança.
o país está tão triste, é tão fustigado todos os dias por notícias que preferia não ouvir, há tanta gente a imigrar ou com vontade de o fazer, que se tornaria muito relevante ouvir o chefe do estado, na mensagem de ano novo, dizer que estamos na rota certa e mostrar qual é a porta por onde se entra para um tempo um pouco melhor.