O Titanic tornou-se, assim, um símbolo da fragilidade das grandes estruturas. No dizer dos especialistas, era tecnicamente impossível aquele navio afundar-se – mas a realidade encarregou-se de desmentir a teoria e provar o contrário. O Titanic, o barco mais seguro do mundo, naufragou sem apelo nem agravo, mostrando ser um gigante com pés de barro. Uma espécie de Golias dos mares.
Mas na sexta-feira passada o desastre do Titanic não foi uma metáfora: o seu fantasma tornou-se bem real. Num cruzeiro no Mediterrâneo destinado a ser pacífico, tranquilo e repousante, a história de horror aconteceu. Com a costa à vista, quase ao alcance da mão, o Costa Concordia embateu numa rocha, adornou e acabou por ficar semi-submerso. Trinta passageiros morreram ou desapareceram.
Há um ano e meio viajei num paquete semelhante àquele, da mesma companhia, chamado Costa Pacífica. E o trajecto foi quase o mesmo do paquete sinistrado. Também partimos de Barcelona, também aportámos a Civitavecchia, também de lá seguimos para Savona – em cuja rota o Concordia agora naufragou.
Um cruzeiro tem a grande vantagem de se poderem visitar várias cidades sem mudar de meio de transporte nem andar com a mala às costas. Nesse cruzeiro visitámos Palma de Maiorca, Tunis, La Valletta, Catânia, Roma e Génova. A vida a bordo é calma ou agitadíssima, conforme as preferências. Durante a viagem li dois livros – o Jaime Bunda, Agente Secreto, uma história engraçadíssima de Pepetela, e A Casa Comboio, da estreante Raquel Ochoa –, aproveitando todos os momentos livres para me sentar a ler na varanda do camarote. Era soberbo estar ali, de dia ou de noite, com o mar em frente dos olhos e uma temperatura magnífica. De vez em quando cruzávamo-nos com outro paquete, o que era uma festa, víamos golfinhos ou uma ilha deserta ou habitada, como a mítica Stromboli. Causava alguma impressão ver ilhas habitadas no meio do mar, como se as pessoas vivessem em barcos enormes ancorados na imensidão da água, sem nada à volta.
Mas para quem não queria calma havia diversões constantes: bares, discotecas, espectáculos de music-hall e karaoke, bingo, roleta, etc., etc. Era uma alegria! Mesmo durante a hora do jantar havia quase sempre animação.
O mais desagradável do cruzeiro era o barco levar muita gente. Tal como sucedia com o Costa Concordia, no Costa Pacífica viajavam cerca de 5 mil pessoas, entre passageiros e tripulantes. Tínhamos a sensação de andar permanentemente no meio da multidão.
A hora do pequeno-almoço e a do almoço eram as mais antipáticas, pois, sendo self-service, não podíamos fugir da barafunda. Ao jantar havia dois turnos de refeições como neste cruzeiro (quando se deu o acidente, os passageiros estavam no 2.º turno), e a comida em geral era bastante boa, abundante e bem confeccionada. E o serviço era excelente, apesar das dificuldades: imagine o leitor uma sala com mais de mil pessoas sentadas, todas a serem servidas ao mesmo tempo.
O camarote era limpo e arrumado duas vezes por dia, e se pedíssemos algum serviço extra éramos imediatamente atendidos.
Calculo o pânico que se terá gerado quando as pessoas se deram conta de que o paquete ia afundar-se. É que aquele é o último lugar do mundo onde se pensa que pode ocorrer um acidente – e por isso a surpresa e o consequente pânico terão sido muito maiores. Num exercício de segurança obrigatório que foi feito a bordo do meu cruzeiro, instalou-se uma grande confusão. Imagino o que não terá sido numa situação de desastre iminente.
O argumento de que um cruzeiro no Mediterrâneo era absolutamente seguro e tranquilo foi utilizado por mim quando, há dois anos, convenci a minha mulher a voltar a meter-se num barco, depois de uma experiência falhada em 1986.
Nessa altura fizemos um cruzeiro ao Mar do Norte, a convite da entidade organizadora. O navio era o Dmitri Schostakovich, ao serviço de uma empresa soviética. Curiosamente, o imediato tinha sido meu colega no liceu e trabalhara antes no paquete Funchal. E o José Nuno Martins fazia uma espécie de rádio de bordo.
O tamanho desse paquete russo era o ideal: muito mais pequeno do que o Costa Pacífica, sem aquele aspecto de centro comercial flutuante. Nunca havia a sensação de se ir no meio de uma multidão. E o trajecto sabia mais a aventura: íamos ao Mar do Norte, com passagem pelo Mont Saint-Michel, Escócia, fiordes da Noruega, Cabo Norte (com o bónus do Sol da meia-noite) e Reykjavik, na Islândia.
No meu imaginário de criança a expressão ‘Sol da meia-noite’ era uma figura de estilo, a imagem de qualquer coisa inalcançável. Vê-lo foi, pois, uma enorme emoção. Foi como se uma miragem se tornasse subitamente realidade.
Eu levava os meus dois filhos, o Francisco e o Zé, que eram miúdos. Saímos todos para o convés enrolados em mantas, estava frio, à meia-noite vimos o Sol tocar a linha do horizonte, como se estivesse a pôr-se, e depois começar outra vez a subir e a elevar-se no céu. Foi uma visão inesquecível.
Uma das piores coisas desse cruzeiro era a comida. Sendo a tripulação soviética, a empresa contratou o chef Michel para adaptar a comida aos hábitos portugueses. Era, aliás, com o filho de Michel, o hoje famoso chef Olivier, que os meus dois filhos brincavam. Ora imaginem-se cozinheiros russos a confeccionar comida portuguesa sob as ordens de um cozinheiro francês de origem argelina! Uma enorme trapalhada. Mas lá se comeu – e Michel, no fim, até foi aplaudido.
Foi um cruzeiro duro, pois chegámos a estar 5 dias e 5 noites em pleno mar, cruzando o Atlântico, sem ver terra. No Mar do Norte, ondas gigantescas batiam no casco do navio com um impacto seco, brutal, como se estivéssemos a ir contra as rochas. A minha mulher enjoou, ficou dias seguidos sem sair do camarote, atingiu o desespero. E eu só consegui convencê-la a fazer o cruzeiro do ano passado com o argumento de que o Mediterrâneo era calmo, tranquilo e que não havia qualquer risco.
Ora, imagine-se o que seria se estivéssemos agora a bordo deste Costa Concordia que naufragou! A minha mulher não mais se meteria num barco, nesta e nas próximas encarnações.
E nesta época de crise, a tragédia parece ter vindo dizer-nos que não se está bem em lado nenhum. Nem a bordo de um gigantesco paquete navegando pachorrentamente num lago chamado Mediterrâneo – onde as pessoas tinham pensado poder estar uma semana sem se preocuparem com nada, apenas gozando os prazeres da vida.
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