Os ‘especialistas’ ainda nos assustam mais

Os portugueses estão psicologicamente destruídos. Não haja ilusões sobre isso. O que ouvem todos os dias é aterrador.

essa parte não está no memorando com a troika. as medidas que lá estão são duras e exigentes. mas nada lá se diz sobre a destruição do ânimo dos portugueses e de outros povos europeus.

para além das assustadoras declarações que se ouvem quase todos os dias, quando os ‘especialistas’ se juntam ainda é mais complicado.

há alguns dias assisti a um conhecido programa de televisão e ouvi várias afirmações – não inéditas – que procuravam explicar que portugal tem de conseguir saldos orçamentais positivos de maneira a poder pagar a sua dívida.

falta só explicar quanto por ano. 1% do pib? ou seja, 1.800 milhões de euros por ano? como? e, se for assim, poderão explicar quanto tempo demorará a pagar? cento e cinquenta anos?

pior do que ouvir os pessimistas é escutar a incongruência do que é afirmado pelos ‘especialistas’.

quando os portugueses, sentados em suas casas, ouvem estas análises e pressentem que elas não batem certo no curto, médio e longo prazo, como reagirão?

quando ouvem tudo isso e, ao mesmo tempo, todos os dias recebem notificações, ouvem anúncios, têm notícias sobre medidas que lhes exigem ‘couro e cabelo’, o que pensarão?

o que sentirão sobre a lógica desse enorme esforço face à irracionalidade das ditas análises?

o conselho europeu resolveu exigir o défice e a dívida na constituição.

bom! o limite à dívida ainda pode ter alguma racionalidade, porque se trata de um valor, por natureza, menos circunstancial. mas quanto ao défice, como é possível, santo deus, tamanho irrealismo?

não é preciso já se ter assumido a responsabilidade da elaboração e execução de um orçamento para saber quão aleatório pode ser o resultado, no período de um ano, da gestão das medidas, dos factos, dos imponderáveis que os factores externos sempre representam.

já há meses fiz referência, neste espaço, ao acordo assinado entre a alemanha e as entidades que financiaram o desenvolvimento do país após a 2.ª guerra mundial.

a amortização da dívida deveria ser feita só nos períodos em que a evolução da economia o permitisse.

será isto muito complicado de entender e de fazer? será mais natural ‘espremer’ os estados até parte da dívida ter de ser perdoada, poucos anos depois, como no caso da grécia?

uma estratégia para vergar os países do sul?

é tudo tão irreal que parece um jogo da realidade virtual. é nítido que existem demasiados nonsenses em todo este processo para poder ser considerado verosímil.

os ajustamentos propostos acarretam desvalorizações muito significativas. e cada vez mais se propõem reduções salariais como meio de recuperar a competitividade.

recordo-me do que me disse jean-claude trichet quando o recebi, em são bento, em 2004, sobre as distorções nos termos de competitividade entre a economia alemã e a economia portuguesa – tendo referido, de modo explícito, o aumento dos nossos custos produtivos nos 20 anos anteriores. disse-me que o que se tinha passado equivaleria, se ainda existissem essas moedas, a uma desvalorização do marco em relação ao escudo superior a 20%!

é impossível acreditar que os dirigentes da europa monetária não tivessem os conhecimentos suficientes para poderem perceber, com antecipação, aquilo que estava a acontecer. alguém acreditará que não sabiam?

tudo o que está a acontecer parece resultar de uma estratégia maquiavélica para forçar o governo europeu. das duas, uma: ou abdicação da soberania orçamental, e talvez fiscal, ou desintegração da zona euro.

tudo, incluindo as insólitas actuações das agências de rating, configura um processo sem nexo mas com uma lógica: fazer vergar todos os estados do sul.

de uma maneira ou de outra, espanha, itália, grécia, portugal e, talvez mesmo, frança são postos em causa. há países com níveis de endividamento bem superiores. mas, com um pretexto ou com outro, são estes que estão em causa.

reparem: a espanha começa a ser objecto de declarações de responsáveis europeus que já ouvimos sobre a irlanda e sobre portugal: «estamos convencidos de que a espanha conseguirá», «as medidas do novo governo espanhol vão no sentido certo e saudamos a coragem dos seus responsáveis» e por aí fora… sempre a mesma conversa, sempre o mesmo processo. europa do norte de fora, europa do sul em causa.

os nossos défices são os excedentes deles? pois! nada disto tem nexo para ‘sarar as feridas’, mas tem a lógica de enfraquecer alguns para os convencer das vantagens do governo central europeu.

os líderes da ue estão a forçar um governo europeu?

«modificaram-se as condições em que se pensava e se exercia a responsabilidade política. o problema está em como representar essa responsabilidade num momento em que perdeu evidência a relação entre o meu comportamento individual e os resultados globais.

a ilustração desta nova articulação entre o próprio e o comum só será conseguida se elaborarmos um conceito de responsabilidade que atenda à actual complexidade social e corresponda às nossas expectativas razoáveis de conseguir um mundo que possa ser governado e pelo qual nos responsabilizemos» – escreve daniel innerarity, grande pensador basco, em o futuro e os seus inimigos (editora teorema, 1.ª ed., março de 2011).

e duas páginas antes: «os dirigentes económicos e financeiros cometeram o erro de confiar absolutamente na capacidade auto-reguladora dos mercados financeiros. uma parte dos riscos tinha sido disseminada no mercado de maneira que as instituições financeiras não os podiam medir nem estimar o seu impacto futuro».

depois de ouvirmos as decisões deste conselho europeu ficamos sem saber, mais uma vez, se pensaram mais no presente ou no futuro. e se tiveram ‘memória financeira’, como diz o referido autor.

continua a faltar rasgo, continua a ser ‘mais do mesmo’. a única explicação é querer forçar o tal dilema: ou mudar a zona euro e ficar só para alguns ou nascer o tal governo europeu. o que será melhor?

julgo que todos sentimos que falta sentido, nexo, congruência, ao que se ouve. tanto absurdo da parte de tantas pessoas inteligentes é impossível.

como diz ulrich beck, citado na referida obra, é a verdadeira «irresponsabilidade organizada».

repito: será? ou será falta de organização, como defende o professor da universidade de saragoça? é importante resolver-se esta dúvida para todos sabermos como agir.

farão mal de propósito, mesmo que com bons propósitos posteriores? no geral, claro que não. mas a ‘mão invisível’ continua a andar um pouco por todo o lado. são duas, nunca nos esqueçamos: a económica e a política.