Rubem Fonseca brilhou no primeiro dia do Correntes d’Escritas

Charme delicioso, sentido de humor cortante e domínio total do verbo. Rubem Fonseca, um dos maiores escritores da língua portuguesa vivos, que raramente aparece e nunca dá entrevistas, inaugurou o primeiro dia do Correntes d’Escritas em grande estilo, deixando o auditório da Póvoa de Varzim rendido aos seus encantos.

de manhã, recebeu o prémio literário casino da póvoa / correntes d’escritas, pelo livro bufo & spallanzani (ed. sextante). agradeceu a distinção, enalteceu a língua portuguesa e recitou um soneto de camões, deixando muitos dos presentes comovidos. à tarde, depois de receber a medalha de mérito cultural entregue pelo secretário de estado da cultura, francisco josé viegas, que o descreveu como «um dos grandes mestres da língua portuguesa», juntou-se a almeida faria, eduardo lourenço, hélia correia e ana paula tavares numa mesa sobre o tema ‘a escrita é um risco total’.

e foi aqui que provocou gargalhadas na plateia inteira, quando mostrou que, ao contrário do que afirma, de tímido pouco tem. «sou da escola peripatética, não consigo falar sentado», disse, levantando-se, e começando a percorrer o palco. e o que se seguiu foram 15 minutos (terão sido 30 que passaram a correr), nos quais analisou as características necessárias para se ser escritor, mostrando que aos 86 anos ainda está em excelente forma.

«escrever é uma forma socialmente aceite de loucura», garantiu. «nesta mesa somos todos loucos». e, debruçando-se sobre eduardo lourenço, por quem assegura ter grande estima, continuou, referindo-se ao autor de o labirinto da saudade: «tem uma loucura escondidinha, ninguém percebe, mas é louco». depois explicou, falando alto, a bom som, e dando uma entoação dramática à frase, que «a melhor maneira de criar um poeta é, à medida que a criança vai crescendo, torná-la cada vez mais neurótica».

e o autor de a grande arte foi continuando, pouca atenção dando ao óbvio, «tem que ser alfabetizado, mas não muito», mas salientado a necessidade de que o escritor «tem que dar a ver, tem que fazer sentir, porque só assim o leitor pode compreender».

«tem que ser motivado, porque sem motivação não se descasca nem uma banana», prosseguiu, lembrando que montalbán, o criador de pepe carvalho, disse em tempos que se quis tornar escritor para ser alto e bonito. e as suas recordações literárias continuaram, quando referiu que a quarta característica necessária para se ser um bom escritor é a paciência, dando como exemplo flaubert, que demorou cinco anos a escrever madame bovary: «ele sabia que não existem sinónimos, isso é coisa para gramático. cada palavra tem um significado diferente!».

ao lote, o vencedor do prémio camões em 2003, juntou ainda a imaginação: «temos que inventar, não podemos andar a contar a vidinha da gente, tem que criar».

para encerrar o discurso, o autor de mandrake, a bíblia e a bengala, (que venceu o prémio camões em 2003) leu novamente camões e voltou a enaltecer a língua portuguesa: «a língua portuguesa é eterna, uma das mais lindas do mundo». o longo aplauso que se seguiu provou que os que tiveram a honra, e o prazer, de assistir a uma das raras aparições públicas de rubem fonseca, sabem que é graças a ele, e à sua absoluta mestria narrativa, que a língua portuguesa se mantém, e manterá, viva.

rita.s.freire@sol.pt