foi com orgulho que portugal desfilou pela pela passadeira vermelha do festival de cinema de berlim, que acabou no último fim-de-semana. joão salaviza venceu o urso de ouro (a distinção máxima) pela sua curta-metragem rafa – que se juntou à palma de ouro que ganhou em cannes, em 2009, por arena – e miguel gomes, com a sua longa tabu, entrou na competição oficial e arrebatou dois prémios: o alfred bauer para a inovação, e o fipresci, da crítica (que já tinha ganho em viena, em 2008, por aquele querido mês de agosto). jornais de todo o mundo tecem-lhes os maiores louvores. por cá, espera-se que os filmes estreiem na primavera.
é já um cliché os vencedores afirmarem-se surpreendidos com os prémios recebidos e joão salaviza não fugiu à regra. mas garante que a sua foi uma surpresa autêntica e não das que «se costumam dizer por modéstia». com 27 filmes a competirem pelo urso de ouro para melhor curta-metragem, o realizador achou que o seu não iria sobressair. «saiu um bocado fora da linha de programação de curtas em berlim. os outros procuravam qualquer coisa mais sofisticada. o rafa é um filme simples, muito minimal, sobre coisas pequenas, sem nada de extraordinário. e, às vezes, os festivais procuram coisas grandes, épicas e impressionantes», desabafa ao sol. «fiquei mesmo surpreendido».
mas de que coisas pequenas trata, afinal, este filme de que o júri tanto gostou mas que portugal ainda não viu? de forma muito resumida, rafa narra a história de um miúdo de 13 anos que, de noite, vai percorrer as ruas de lisboa à procura da sua mãe. esta curta encerra, assim, a trilogia iniciada com arena (que recebeu, em 2009, a palma de ouro em cannes) e continuada com cerro negro (uma encomenda do programa próximo futuro, da gulbenkian). esta não foi, porém, uma trilogia programada. aliás, salaviza diz que só ao filmar rafa se apercebeu da unidade temática que liga os três filmes: «personagens que deambulam e que não têm muito bem para onde ir. que definem um objectivo para tentarem resolver um pequeno problema, algo fútil e pequeno, e que nessa viagem se perdem da sua meta principal».
se em arena vemos um homem que sai de casa com o objectivo de ir recuperar 20 euros mas que, no fundo, está à procura da sua liberdade, em rafa vamos conhecer um miúdo de 13 anos que se desloca de um bairro na margem sul para o centro de lisboa, porque descobre, a meio da noite, ainda em casa, que a mãe está detida numa esquadra da polícia. vai, então, à sua procura – acabando por voltar para casa sem ela.
e, afinal, a tentativa de encontrar a mãe mais não é que um pretexto para uma viagem interior de maturação. «há sempre esta relação de indivíduos que estão perdidos e que querem inscrever-se na sociedade. que não o conseguem mas lutam por isso», explica o cineasta.
rafa é um filme iniciático, sobre «um miúdo que percebe que tem que ser o homenzinho da casa», que se traduz em elementos como o atravessar, de moto, o tejo, para chegar a lisboa. o que não acontece para mostrar a beleza da ponte 25 de abril, «mas porque há essa ideia de cruzar um rio, que é uma barreira física, entre um sítio e o outro», salienta salaviza. o filme tem, assim, uma estrutura que lembra a dos ritos de passagem tradicionais, «de um miúdo que tem que sair da sua aldeia para ir à floresta, ou a uma zona perdida, resolver qualquer coisa e voltar adulto».
há muito tempo que o cineasta tinha vontade de filmar essa fase da vida de alguém cujo papel dentro da família se inverte, passando a ser o responsável, em vez do protegido. «começamos a perceber que a nossa família não é eterna e não vai estar cá para sempre. o papel de nos sentirmos eternamente protegidos pelos nossos pais subverte-se. é assustador perceber que começamos a ficar responsáveis por eles. para algumas pessoas isso acontece aos 40 anos, para outras pode acontecer aos 13. quis filmar esse período de transição da relação entre um filho e um pai ou uma mãe».
a ligar os filmes estão, também, os subúrbios lisboetas. salaviza assegura que as cidades estão muitas vezes desadequadas à dimensão humana. «os subúrbios empurram para fora da cidade quem não deve estar no centro. não é por acaso que, tradicionalmente, na europa, as classes mais baixas e trabalhadoras vivem nos subúrbios das grandes cidades». há, pois, na trilogia, um desejo de pertença, de movimento do exterior para o centro.