Se eu tivesse discursado no Congresso…

Se eu tivesse discursado no Congresso, teria dito algo do género: ‘Ainda bem que acabaram com o engano da aprovação da chamada lei da rolha, porque, como disse o actual presidente da JSD no próprio Congresso, as votações em que as pessoas se enganam devem ser repetidas’.

o presidente da jsd chegou ao ponto de afirmar, com orgulho, que «essa capacidade de repetir votações enganadas é, também, o que distingue o psd de outros partidos».

duarte marques, o referido presidente da jsd, pessoa com qualidades já bem evidenciadas (e assinalável voluntarismo político), fez essa declaração a propósito de um novo engano, desta vez sobre as ‘directas’, em que a jsd propunha algo de muito semelhante ao que eu propus no congresso extraordinário de mafra, há dois anos: um congresso antes das directas.

na altura, santa maria! o que disseram dessa proposta! quantas intenções lhe atribuíram! desta vez, a proposta surgiu, ninguém se preocupou – e, ironia do destino, numa primeira votação até passou…. compreendem como não eram genuínas as preocupações há dois anos?

não vale muito a pena prolongar a análise. mas o destino tem destas coisas: os que disseram que se enganaram sobre a lei da rolha enganaram-se agora, sem rolha, numa matéria tão importante como o método de eleição dos dirigentes nacionais e a própria realização de congressos.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘terão feito bem em revogar a tal lei da rolha, em mudar ou não mudar as directas, em fazer os balanços que consideraram adequados dos últimos anos da vida do psd’.

teria dito, ainda, que só lhes faltou fazer outro balanço. é que, como diria pacheco pereira, ainda não se fez o verdadeiro balanço, a verdadeira análise, o verdadeiro estudo da subida de josé sócrates ao poder.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘hoje em dia é fácil falar da personalidade de sócrates e dos resultados das suas opções governativas: endividamento, parcerias público-privadas, empresas de transportes, desertificação do território, sistema financeiro, mercado de arrendamento, etc.’.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘a culpa não foi só de josé sócrates. nós deveríamos ter corrigido muito mais cedo a trajectória do endividamento, até pelas dificuldades de crescimento da nossa economia’.

teria lembrado que, enquanto outros se endividam mas crescem, nós endividámo-nos sem crescer. e, na última década – a década maior desse endividamento –, seis anos em dez tiveram sócrates como primeiro-ministro. teria lembrado que, naquilo que me respeita, nem chegou a seis meses em plenitude de funções!

sócrates teve a conivência de gente do psd

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘talvez já fosse possível, hoje enumerar os episódios que jorge sampaio referiu no discurso em que pretendeu justificar a dissolução do parlamento’.

recordo esses episódios: ataque às ppp no plano rodoviário, com defesa intransigente do princípio do utilizador-pagador; aprovação da nova lei do arrendamento (que, como se escreve hoje na imprensa económica, nunca interessou aos que mais ganharam com o crédito para a compra de casa); aumento do irc dos bancos; etc.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘sei bem que há quem pense que a dissolução se deveu aos problemas na leitura do discurso da tomada de posse, a uma expressão facial de paulo portas quando ouviu o nome dos ministérios, a uma mudança numa secretaria de estado pouco tempo antes da posse, e às críticas de um ministro a um comentador televisivo’.

teria dito que ambas as teses são possíveis – e que cada um lá sabe aquela em que acredita.

mas teria lembrado, também, que houve quem no psd fizesse tudo para que o ps de josé sócrates ganhasse as eleições. como escrevi atrás, a culpa não foi de sócrates mas também de todos aqueles que preferiram o seu governo e a sua subida ao poder.

os nossos avós ensinam-nos que temos de ser responsáveis pelos nossos actos. ora houve, de facto, quem tivesse deixado entrar josé sócrates numa passadeira vermelha e o tivesse deixado galopar, triunfante, até ao total exercício do poder, que muito custou a desmontar.

quase ninguém se levantou contra o golpe do suposto défice de 6,8385 em 2005 – engendrado entre sócrates e o então governador do banco de portugal, vítor constâncio.

nos primeiros anos da governação de sócrates, ele vangloriava-se de manter auto-estradas sem portagem, totalmente grátis, e zurzia o governo anterior, de alto a baixo, por ter querido mudar esse regime. e fê-lo perante um silêncio quase generalizado.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito qualquer coisa do género: ‘sócrates não se impôs sozinho. contou com a conivência, a cumplicidade, o apoio e até a admiração de muitas pessoas que hoje o excomungam’.

e se eu tivesse discursado no congresso, teria dito que falta mesmo fazer esse balanço, de cara ao espelho, por muitas pessoas.

criticam agora o poder judicial em relação à licenciatura? atiram-lhe piadas, agora, sobre isso? mas deviam tê -lo feito, todos, quando josé sócrates era primeiro-ministro. eu sempre considerei essa história, a ser verdadeira, indigna de um primeiro-ministro. mas quantos disseram e escreveram, na altura, que não tinha importância? quantos disseram e escreveram que a história das assinaturas nos projectos pertenciam à vida privada já muito passada?

foi opinião quase generalizada. e agora ataca-se o poder judicial?

as traições não podem repetir-se

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito algo do género: ‘a maneira de ser dos portugueses é muito assim – deixem lá isso, o que é que interessa? agora é que falam disso, que respeita ao passado do homem? a responsabilidade não é dos menos informados, é dos mais informados e dos que formam opinião. foram esses que mais difundiram a complacência generalizada’.

se eu tivesse discursado no congresso, teria dito ainda algo do género: ‘tudo isso, para muitos, interessa muito pouco’.

é passado? pois é! só que, se não tivéssemos seguido esse caminho, não teríamos chegado onde chegámos.

e aqui é que começa a interessar. se não tivéssemos chegado onde chegámos, pedro passos coelho não teria de pedir aos portugueses tantos sacrifícios.

eu estava a ouvi-los, no congresso, pela televisão, estava a ouvir o discurso de antónio josé seguro, em braga, e pensava com os meus botões: pois é, o país está como está, josé sócrates teve muita culpa, mas como é que um homem com tantos defeitos conseguiu chegar ao poder e governar tantos anos?

se eu tivesse discursado no congresso, teria reflectido e dito algo do género: ‘houve a partida de guterres antes do pântano, houve a partida de durão barroso para bruxelas – e depois entrou um governo (o meu) que esteve oito meses no poder, dos quais só quatro em plenitude de funções’.

se eu tivesse discursado no congresso, teria feito a pergunta para o ar: ‘quantas culpas tem um partido que não se importa que entre um governo como o de sócrates para substituir um governo de si próprio?’ e se tivesse discursado no congresso, teria concluído a minha intervenção dizendo: ‘que mau devia ser esse governo. só pode ter sido ele o culpado…’.

não fui lá fazer esse discurso, entre outras razões, porque não queria falar lá do passado. na situação em que está portugal, importava lá falar, mais do que tudo, sobre o presente e sobre o futuro.

mas há passados e atitudes que contam muito. que têm muita culpa e que não se apagam revogando seja que norma for. as traições não se podem repetir. portugal tem de mudar de vez.