costuma rever-se?
o mínimo possível. já tive fases em que não via nada, mas depois percebi que não era muito profissional. é estranho ver-me e ouvir-me.
ainda, depois destes anos todos?
sim, e mais estranho será o dia em que não for. significa que há uma aceitação total e isso não é bom. raras são as pessoas que lidam bem com a sua própria imagem. o espelho tem essa coisa traiçoeira. no início pensava: ‘esta voz é minha? este sou eu?’. depois há uma habituação. se pudesse não me ver, não via. há cenas em que me custa mesmo muito ver-me.
e tem noção da imagem positiva que o público tem de si? está numa espécie de olimpo de actores da sua geração.
o trabalho de actor é um trabalho que é de uma equipa, de um todo. portanto, como sinto que ainda não construímos um projecto transversal a toda a sociedade, do calceteiro ao sr. dr., então também não podemos falar de alguém, individual, que tenha atingido um dado nível. há excepções, claro, o nicolau breyner, por exemplo, n’os imortais, tem um monólogo sobre o filho profundamente emocional. aquilo tocou-me como uma meta. um professor com quem trabalho regularmente, o robert castle, diz sempre que não se é muito bom actor, está-se. e pode-se deixar de estar. cai-se do olimpo com grande facilidade. o que fazemos é fugaz.
já sentiu vontade de desistir?
normalmente, antes de cada take, tenho essa vontade. há ali dois segundos em que me apetece desistir. a exposição, o sermos analisados e pensados por toda a gente, tudo isto é cansativo. há uma frase gira: ‘a malta pública toda a gente a conhece, mas ninguém a entende’. eu próprio tenho adoração por alguns artistas e já percebi que é melhor nem conhecer para não me desiludir, como o [john] malkovich adora o bob dylan, conheceu-o e descobriu que era humano e não o deus que ele achava que era.
está de partida para os eua. vai em busca do sonho americano?
fui colonizado desde muito cedo pelos eua. os meus pais estudaram lá, eu estive lá em criança. para mim sempre foi um enorme mito. estive lá a estudar entre 2001 e 2004, no lee strasberg, e depois voltei porque tive uma série de propostas de trabalho. uma coisa encarrilou na outra e, de repente, passaram-se estes anos todos. agora voltei a pensar nisso porque isto aqui está péssimo. não é que alguma vez tenha estado excepcional, mas havia, pelo menos, dois guiões entre os quais podia escolher. agora deixámos de ter hipóteses de escolha. claro que lá vou ter de esgravatar. mas dou-me bem a fazer castings, dá-me prazer.
tem agente lá?
sim, tenho um manager americano, esse é o primeiro passo. já lá estive noutros momentos e até já me passaram umas oportunidades pela frente que gostava de ter agarrado.
como por exemplo?
há dois anos fui a los angeles, também com o intuito de esgravatar, e fui parar a um casting, para um filme escrito e realizado pelo paul schrader, o argumentista de taxi driver e american gigolo. foi um casting muito emocional e descontrolado, mas nos momentos em que consegui acertar foi muito bem recebido. ele foi muito generoso na crítica. saí dali excitado com a possibilidade, liguei logo à minha irmã. mas não deu em nada. são possibilidades que podem mudar a vida.
desta vez vai com data de regresso?
tenho o limite do visto turístico: três meses. esse período ficarei, mas não gosto de fechar portas, portanto se houver um projecto interessante aqui, poderei voltar.
e porquê nova iorque?
é uma cidade onde as pessoas têm uma motivação forte e lutam pelas suas ideias. los angeles é maravilhoso, mas tem uma coisa enervante: toda a gente tem uma folha debaixo do braço com uma fotografia e um currículo, toda a gente é actor. não há conversa que não seja sobre isso. posso estar enganado, mas também é o que a minha manager me diz: em nova iorque é possível encontrar um bigger fish num smaller pound. e há um lado de amor à camisola, que nos permite trabalhar mais.
é-lhe fácil partir assim?
nunca é. nunca gostei de viajar, a não ser que seja em trabalho, em que está tudo tratado pela produção e levam-me lá. até estar no táxi questiono-me imenso, tenho uma ansiedade brutal. custa-me imenso, a falta da família, do meu relacionamento… é curioso porque foi-me incutido muito cedo a necessidade de circular.
falou da primeira experiência nos eua, ainda criança. o que recorda dessa estadia?
os meus pais foram para o texas fazer o doutoramento, o meu pai em engenharia ambiental e a minha mãe em físico-química. tinha três anos e fui com eles, mas fiquei apenas seis meses. desenvolvi uma série de otites e fiquei num estado avançado de surdez. foi uma coisa grave, fui operado aos ouvidos, nariz e garganta e tiveram de me recambiar para portugal porque estava a ficar muito debilitado. a única memória que tenho dos eua é de estar no hospital com uns headphones a fazerem-me o teste da capacidade auditiva. depois voltei para portugal e fiquei com os meus avós. os meus pais ficaram mais um ano.
o que lembra desses avós?
a minha avó está vivíssima, tem 92 anos! o meu avô morreu há dez anos e nessa altura pensámos que a estrada terminaria ali… mas antes pelo contrário, tornou-se uma mulher independente aos 80 anos. tenho uma ligação muito forte com ela, é imparável. claro que, para manter aquela energia, não é uma pessoa zen. mas tem um amor inexplicável pelos netos. é um exemplo de saber viver. é profundamente curiosa, está-me sempre a questionar sobre o que penso disto e daquilo. e é muito religiosa.
é um neto muito presente?
sou um sortudo. a minha avó faz-me o almoço pelo menos uma vez por semana. nesta altura do campeonato o contrário é que seria justo, mas não. ainda há três dias me descascou uma laranja. descascou-a e tirou tudo, os caroços e aquelas partes brancas! nem queria a laranja, mas não podia dizer que não! sou muito presente, também porque me faz falta. e espero estar presente quando as situações forem menos gratificantes e estar à altura do desafio.
como lida com essa inevitabilidade da morte?
a morte não é uma coisa que me esteja muito próxima. tenho amigos que, há dez anos, já tinham perdido alguém muito próximo, eu não. mas lembro-me de ser miúdo e imaginar o dia em que a minha avó morria e isso transtornar-me. a minha profissão ensinou-me a trabalhar por paralelos. como não posso ter todas as experiências da vida, tenho de reconhecer as que me servem como paralelo. vou fazer um paralelo idiota: já tive vários animais de estimação, morreram todos e custou-me muito, mas estamos a falar de corpos pequenos. se calhar o tamanho dos corpos influencia a saudade. não sei… acima de tudo o que desejo são mortes rápidas. quando vier que nos leve rápido. o meu pai sempre disse que, às vezes, o problema não é morrer, é ficar vivo.