precisa de acreditar na inocência de um cliente para o defender?
não. preciso de acreditar na maneira como o estou a defender.
isso, em concreto, quer dizer o quê?
se um fulano abusou de uma criança, sei que ele o fez e me vem pedir para que o defenda no sentido em que ele não abusou da criança, recuso o caso. mas se ele vier ter comigo e me disser que abusou da criança, que está arrependido e quer explicar as circunstâncias da sua perturbação sexual, defendo. todas as pessoas têm o direito de ser defendidas.
e pode recusar um caso porque não quer perder e isso lhe parece provável?
não. recusar por não querer perder, nunca. já aceitei muitos casos em que sei que a probabilidade de ganhar é mínima. desde que acredite, aceito. ainda agora vou defender o tipo da tvi [henrique jales] que engatava miúdas pela internet e que teve relações com uma de 13 anos. uma amiga dele que é minha amiga pediu-me para o defender. falei com ele e ele explicou-me que ainda bem que isto tinha acontecido, porque o parou, que esta coisa dos engates pela internet começou com miúdas de 19 anos e acabou com uma de 13. diz-me que está arrependido e quer confessar e colaborar. por que não hei-de defender um homem destes? o problema não está em defender um criminoso, está em como se defende um criminoso. um advogado não é uma consciência alugada, portanto, se aquilo que as pessoas me pedem não corresponde aquilo que acho que deve ser não aceito.
não receia ficar conotado como o defensor dos agressores sexuais de menores?
não. só defendi dois casos na minha vida. um assume que é culpado e é culpado. o outro não é culpado.
fez sempre questão de dizer que acredita piamente na inocência de carlos cruz…
o advogado não tem de vir defender as pessoas na praça pública, mas há casos e casos e na casa pia tenho a obrigação. tenho a certeza do que estou a dizer. não tenho a mais pequena dúvida.
nunca teve?
durante quase um ano testei o carlos cruz de todas as maneiras e feitios.
testou como?
tive de reconstituir a vida dele. não sabíamos quais eram os factos que lhe estavam atribuídos, nem qual o período de tempo da acusação. como ele estava preso, e os presos têm de se manter ocupados, disse que íamos reconstituir a sua vida. num caderno começou a fazer esta reconstituição, com base nas agendas dele, no cartão de crédito que ele usava sistematicamente, nos recortes de imprensa, na via verde, nas chamadas de telemóvel. isso levou-me a testá-lo e aquilo que ele dizia acabou sempre por ser comprovado por mais um papel. nunca apanhei o cruz em nenhuma mentira, pequenina, média ou grande. depois, quando vi o processo, percebi como é que aquilo tinha sido construído. não tenho a mais pequena dúvida que é uma construção fantasiosa e que não é verdade.
então porque foi construído?
porque se descobriu uma coisa horrível: que na casa pia havia abusos sexuais. isto dá-se num momento em que o mundo acorda para a questão da pedofilia nas instituições sagradas. isto escandalizou as pessoas e era preciso encontrar um culpado. sabia-se que havia um desgraçado, o carlos silvino, que era culpado. e começa-se a falar dos poderosos envolvidos. aparece o pedro strecht (que tinha sido médico de algumas destas pessoas e nunca tinha dado por nada), a dizer que devia haver gente poderosa envolvida. e aparece a teresa costa macedo. há um programa de televisão que já vi várias vezes, o hora extra de 25 de novembro de 2002, que está feito para denunciar o carlos silvino. mas isso era curto. tinha de ser arranjado um demónio e foi a teresa costa macedo. quando vêm ter com ela, disse: ‘eu? eu até dei sequência à denúncia de abusos [do relojoeiro américo]. há uma rede por detrás disto, de diplomatas, gente da comunicação social…’. e a meio do programa passa um papel com vários nomes, entre os quais o do carlos cruz. a partir deste momento aquelas pessoas são lançadas à morte.
como aparece ali o nome de carlos cruz?
em 1980, um casal de miúdos fugiu para casa do ritto porque ele é homossexual e tinha uma relação com esse rapaz – isso é assumido por ele. a miúda que lá estava disse ter visto numa caixa de sapatos uma fotografia que lhe pareceu o carlos cruz, mas ela própria, em tribunal, reconheceu que viu a fotografia um segundo. essa referência ao carlos cruz esteve silenciosa durante 20 anos até ao momento em que aparece esta história que bate certo: um embaixador (o ritto) e uma pessoa da comunicação social (o carlos cruz). depois o puzzle começa a preencher-se. há um médico, homossexual, que andava de ferrari e morava ali ao pé. há um inimigo do manuel abrantes que diz que este protegia o silvino. todas estas pessoas vão aparecendo na comunicação social e só depois na boca dos rapazes.
e os políticos? como surgem nomes como o de paulo pedroso que poucos sabiam quem era?
desde o princípio que fazia parte do discurso mitológico que havia políticos envolvidos. e começam a aparecer nomes. só que há uns que não ficam escritos no processo e há outros que ficam…
o que determina isso?
os polícias, jornalistas e miúdos alimentaram-se uns aos outros com as mentiras que os outros esperavam ouvir. e isto foi construído assim. o que torna este processo monstruoso e fascinante é que todos passam a acreditar nestas histórias. a certa altura os miúdos percebem que há uns políticos de quem podem falar livremente e outros que não. o paulo portas, o luís filipe pereira… não há nada registado deles, mas hoje sabemos que foram falados. o que fica registado é o ferro rodrigues. por que é que isto aconteceu? acham que acredito que alguém disse ‘fala só do ferro rodrigues, não fales do portas’?
então por que caíram nomes como o de paulo portas?
porque há um governo de direita. estes miúdos têm 17 e 18 anos e percebem perfeitamente de que lado sopra o vento. são miúdos espertíssimos, com vidas desgraçadas.
acredita que os outros envolvidos são inocentes?
não tenho dúvidas que são inocentes, excepto o carlos silvino. o ritto e o ferreira diniz estão no processo por serem homossexuais.
deixaria o seu filho de dez anos com qualquer um desses homens?
tenho a certeza.
tornou-se amigo do carlos cruz?
sim. não é possível manter uma luta destas sem estabelecer uma relação humana com quem está à minha frente.
joana.f.costa@sol.pt e raquel.carrilho@sol.pt