Iniciativa individual

Li a letra da canção que acompanha a campanha Zero Desperdício e não me pareceu feliz, tal como não o é o mote da campanha ‘Portugal não se pode dar ao lixo’.

mas nada disto me interessa. antónio costa pereira, revoltado com a comida que sobrava dos restaurantes e que ia parar ao lixo, iniciou uma petição na internet e o movimento acabou por se organizar do seguinte modo. há estabelecimentos aderentes, como restaurantes e supermercados, que doam as refeições, e também entidades, como as câmaras municipais, juntas de freguesia e outras associações de solidariedade social, que se encarregam de recolher e distribuir as refeições por quem precisa. à data em que escrevo, sete dias após o começo da campanha, foram servidas 1.784 refeições. se é a maneira ideal de lidar com um assunto tão delicado? para ser franca, não sei. lamento muito que a carga fiscal aos cidadãos não baste para o estado acudir à fome. por outro lado, um cidadão decidiu intervir nos casos que não podiam esperar. é de louvar.

entretanto, na noruega…

… decorre o julgamento de anders breivik, responsável por matar 77 pessoas, que o próprio disse não serem assim tão inocentes quanto isso. como tantos outros fanáticos parecidos, não reconheceu autoridade ao tribunal e não mostrou arrependimento pelo que fez. por ele, tinha morto mais e feito pior. o mundo civilizado assiste ao julgamento com a repugnância que este merece, à excepção do clube de fãs de breivik. ao que parece não tem mãos a medir para a correspondência que recebe. há imensa gente a querer falar com ele sobre as ideias fascinantes que defende. ora, estando breivik preso, com todo o tempo do mundo à sua disposição, só podemos imaginar a quantidade de cartas. o caso parece uma anedota. da saudação romana no tribunal às exigências de absolvição ou pena de morte, não dá para ouvir a criatura. se o que mais teme é ser considerado inimputável, que seja então punido com a marca de doido varrido. mas na hora de o internarem, por favor, não lhe dêem acesso à internet.

o herói

há dias correu a notícia de que otelo saraiva de carvalho anunciava que era bígamo numa biografia recentemente publicada. um pouco por toda a imprensa, otelo assumia a bigamia. como é evidente, fui ler a notícia. a situação matrimonial de otelo, que fez o favor de tornar pública, é afinal a seguinte: de segunda a quinta vive com filomena. de sexta a domingo partilha corpo e espírito com dina, a mulher com quem casou. se isto é bigamia, sou a ava gardner em 1954, naquele filme sexy, the barefoot contessa. otelo tem duas mulheres, uma com quem casou e a outra com quem passa os dias da semana. bigamia seria, como o próprio grego indica, se tivesse casado com duas mulheres ou se vivesse em união de facto com as duas. neste caso, há só uma partilha de uma pessoa entre duas, como se otelo fosse filho de mães separadas, ou um pai viúvo partilhado por filhas ocupadas, ou um animal de estimação que se vê ora numa casa ora noutra após um divórcio difícil entre dois activistas dos direitos dos animais.

de sempre

a percepção de que está tudo pior do que antes é seguida de vozes que se prontificam a enumerar as ditas coisas boas: o frigorífico, a pílula, o iphone. as coisas boas também nos trouxeram até hoje, mas não são compensações de nenhuma perda ética e moral. são resultados do avanço da ciência e da tecnologia ao serviço das pessoas. não há época que não se queixe da sua decadência, mas o ruído de fundo pressupõe de igual modo a hipótese de uma melhoria. tudo isto funciona muito bem para quem acredita no progresso da humanidade. não é o meu caso. acredito que tudo se mantém na mesma há muitos séculos, só que hoje vivemos mais tempo e temos brinquedos mais giros. o que muda é a relevância que damos a certos comportamentos. há poucas décadas a boa educação era essencial e a mesquinhez era socialmente condenada. segundo observo, a sociedade actual é fraca na hora de punir a má educação ou a desonestidade. não é evidente, mas esta é uma conversa sobre justiça: um problema de todos os tempos.

quem nos defende

adquiri uma fobia: tenho medo daqueles que se auto-intitulam ‘defensores das pessoas’. os amantes da humanidade não estão interessados no meu sofrimento pessoal, no caso de o ter, por algum motivo que só a mim diz respeito, mas não podem ouvir falar de países lá longe de gente com fome. quanto mais longe, aliás, melhor para o fã das pessoas em geral, mas de nenhuma em particular. a criatura que traz o mundo às costas reclama para si a exclusividade das inquietações com os outros. ninguém se preocupa mais nem melhor do que ele. da síria a portugal, que vê de fora, estando dentro ou fora do país, não há ninguém no mundo que durma menos a pensar nos outros. sempre que me cruzo com um destes santos, tento perceber como vive. se faz alguma coisa por alguém; se sequer ouve os seus problemas. venho a saber, já nem me espanto, que não tem amigos. ninguém lhe fala porque entrou em guerra com todos. tudo para estar mais disponível para os outros. a preocupação acaba quando lhe batem à porta.