‘Na transmissão oral há sempre qualquer coisa que muda’

A terceira parte da entrevista de Vasco Graça Moura ao SOL. O presidente do Centro Cultural de Belém fala sobre a sua vida e o espaço que nela ocupam os livros e a literatura.

tem continuado a participar em sessões de poesia. continua a dar-lhe prazer?

em fevereiro do ano que vem faço 50 anos de vida literária, é natural que haja algumas entidades que tenham a simpatia de fazer alguma coisa comigo. para o ego de um autor é sempre gratificante saber que alguém o lê, ou que alguém gostará de o ouvir a falar ou a ler um texto.

começou a ler petrarca muito novo…

comecei a ler muito cedo, aos 4 ou 5 anos. lá para os 7 ou 8 o meu pai dava-me o camilo castelo branco para ler. com grande oposição da minha mãe. foi um prazer e, depois, eu próprio me senti autorizado a outras incursões. mas petrarca foi só aos 17 ou 18 anos. houve coisas que me foram ficando na cabeça. hoje em portugal as crianças não são levadas a memorizar poesia. em qualquer país, qualquer miúdo sabe de cor um ou dois textos de algum clássico. cá não se decora nada porque se acha que exercitar a memória é uma violência para os meninos.

tinha uma grande biblioteca em casa?

era razoável. o que havia era uma forte tradição de leitura.

o sue pai obrigava-o a decorar poemas?

não. o meu pai tinha boa memória e, às vezes, à mesa, recitava páginas inteiras de livros do eça. como, aliás, na geração dele era vulgaríssimo. há passagens do eça de queirós ou do camilo que nós, eu e os meus irmãos, conhecíamos de ouvir antes de os termos lido. ainda hoje me soa mais fidedigno o que ouvi em miúdo do que o que está impresso na página. na transmissão oral há sempre qualquer coisa que muda.

dizia, há pouco, que a sua mãe se opunha às leituras.

achava que não eram próprias para um miúdo da minha idade. nalguns casos tinha razão. mas não me fizeram mal nenhum. muitas coisas provavelmente não percebi quando li pela primeira vez. mais tarde, retrospectivamente, vim a perceber.

tem filhos?

quatro filhos e cinco netos.

passou esse gosto aos seus filhos?

as minhas filhas herdaram mais o gosto pela leitura que os meus filhos. mas elas fizeram todo o liceu francês, desde os três anos de idade até ao último, e o ensino francês é muito rigoroso nesse aspecto. obriga os miúdos a ler sete ou oito livros por ano, com autores escolhidos, e estimula a memorização. é natural que elas tenham ficado mais ligadas à literatura do que os meus filhos.

por que as inscreveu no liceu francês?

tinha boas referências do tipo de ensino, de disciplina e de responsabilização. não estou nada arrependido. os filhos do meu primeiro casamento são mais velhos, nasceram no porto, e aí seguiram o ensino normal.

quando decidiu estudar direito?

no 5.º ano de liceu, aos 15 anos.

foi uma imposição do seu pai?

não, o meu pai não me impôs nada. mas havia uma tradição familiar no direito: o meu avô era advogado, o irmão do meu pai era advogado, primos meus são advogados, já tenho um filho formado em direito… há mais de um século que há uma tradição familiar ligada ao direito.

e o seu pai?

o meu pai trabalhava em publicidade. simplesmente tinha esse interesse ligado à literatura e tinha, também, um certo tipo de reverência familiar ligado ao curso de direito. os miúdos aos 15 anos são encaminhados sem se aperceberem.

chegou a ponderar belas-artes…

sim, gostava.

por que acabou por não seguir essa via?

não sei, inércia…

achou que não tinha vocação?

nessa altura achava que tinha vocação para tudo e mais alguma coisa, é a altura em que se tem as ilusões todas. achei que direito era uma maneira prática de vir a ter uma vida razoavelmente desempenhada, digamos assim, sem grandes dificuldades. a minha ideia era advogar, e advoguei durante 16 ou 17 anos.

e veio estudar para lisboa. porquê?

por razões muito rasteiras. havia algumas dificuldades económicas familiares, e havia um tio meu, irmão da minha mãe, que vivia em lisboa e me podia enquadrar. e por isso vim para cá por razões ligadas ao vil metal. a tradição familiar tinha a ver com coimbra.

qual era a sua especialidade?

trabalhava sobretudo em direito civil e comercial. ainda não havia as chamadas sociedades de advogados. era uma maneira interessante também de levar a vida. mas não dava tempo para estar a escrever.

quando deixou de exercer?

em 1982 ou 1983. era administrador da imprensa nacional – casa da moeda e houve uma decisão de que isso era incompatível com o exercício de uma profissão liberal.

tem saudades do direito?

tenho saudades de um certo tipo de combate civilizado que o direito proporciona. é uma coisa interessante.

ia muito a tribunal?

regularmente. mas o que me interessava mais era analisar, com códigos, pareceres e tratados, a maneira como se podia construir uma determinada situação jurídica. ou desconstruir.

por isso é que agora tem bases para desconstruir o acordo ortográfico.

com certeza. o direito dá-nos uma formação que pode ser utilizada no resto da vida de muitas maneiras. uma vez, num prefácio de um livro meu, uma análise de um poema de camões, falei na importância que tinha tido a minha formação jurídica para me dar um certo método de abordagem nos problemas que estava a tratar nessa matéria literária.

o seu currículo como tradutor é invulgarmente abrangente. traduziu shakespeare, dante, racine… isso supõe uma certa ousadia.

e rilke, e lorca… mas eu não sou um profissional. sou uma pessoa que gosta de ler poesia e que gosta de tentar encontrar na sua própria língua um equivalente. é um desafio a que me entrego com intensidade. a divina comédia foi um caso especial. apostei comigo mesmo que era capaz de traduzir um canto por noite. o que me levava 100 noites. mas como ao fim-de-semana podia traduzir três ou quatro, acabei por levar uns três meses e depois levei outros três ou quatro meses a rever e a fazer notas de rodapé.