Uma vida boa

Fiquei triste com a morte do eurodeputado Miguel Portas. Não pertencia ao seu círculo de amigos, não partilhava das suas ideias políticas, mas seria absurdo dizer que estávamos nos antípodas ideológicos.

cruzei-me uma única vez com miguel portas. estaríamos em 2005, tinha começado a colaborar com o expresso, e um dos meus passatempos preferidos na crónica era ridicularizar o bloco de esquerda. numa noite cheia de gente no frágil, aparece à minha frente um homem de sorriso franco e atitude cálida que me cumprimenta com genuíno entusiasmo. trocámos breves palavras risonhas e francas. fiquei a pensar que o bloco de esquerda não sabia o valor que tinha naquela pessoa que, por sua vez, só se podia ter enganado de partido. nos últimos dias, assisti à confirmação da impressão que me ficara dele: respeitador das diferenças, íntegro nas convicções e leal na discussão. foi bom ver tanta gente a valorizar publicamente o que merece ser preservado. foi bonito ver tanta gente a querer prestar-lhe a sua homenagem.

autonomia emocional

vi há dias na rtp memória a repetição da entrevista a miguel esteves cardoso por rui ramos, em 2006. lembrei-me dos planos de promoção da leitura em portugal baseados na ideia de que é preciso ler os clássicos, senão está tudo perdido. sabemos que não é esse o problema. a questão essencial foi brilhantemente descrita por miguel esteves cardoso: a leitura tem a função principal de nos livrar de sarilhos. uma pessoa que desenvolveu um gosto por ler não está à procura de nada nem de ninguém para preencher um vazio na sua existência. tem mais que fazer; tem um interesse na vida; um livro para ler, seja ele qual for. e se for ávido de henry miller? paciência. não terá um gosto apurado, mas ao menos tem a capacidade de estar sozinho com o plexus, o nexus e o sexus e não se desgasta em relações inúteis. há muitas pessoas, de todas as idades, que não sabem estar sozinhas. vêem os outros como uma oportunidade de terem a companhia que não aprenderam a fazer a si próprias. não lêem, logo são dependentes.

educação e moral

na semana passada, falei aqui um pouco sobre a ausência intrínseca de progresso na humanidade. a natureza humana é a mesma; por isso, no meu entender, é a relevância que damos ao que existe que constitui aquilo a que ilusoriamente chamam ‘mudança’. como exemplo, dei a má educação, punida pela sociedade em tempos não muito anteriores ao nosso, mas que hoje em dia é entendida como um traço distintivo de ‘uma personalidade forte’. é ainda demasiadas vezes confundida com ‘sinceridade’, um valor fundamental para relacionamentos necessariamente verdadeiros. devo sublinhar que a má educação de que falo não se resume à falta de cordialidade, também ela importante, mas à ausência de princípios e de competência moral e humana, que tem consequências directas no modo como nos relacionamos. sejamos decentes uns com os outros no desacordo quotidiano, no conflito de ideias, no confronto ideológico. e deixemos toda a nossa brutalidade e impertinência para a literatura e para o humor.

a nossa bolha

uma decisão invulgar de um juiz de portalegre está a despertar o debate na sociedade portuguesa sobre a realidade dramática da entrega da casa ao banco por impossibilidade de pagamento da mensalidade dos empréstimos. o juiz decidiu que a dívida estaria saldada com a entrega da casa ao banco. o problema é tão complexo, que merecia ser tratado mais exaustivamente por parte da comunicação social. como leiga na matéria, fiquei satisfeita com a decisão do juiz. parece justa, tendo em conta que quem avalia a casa é o banco, tanto quando concede o empréstimo, como na altura em que compra a casa de volta. o banco avalia acima do pedido inicial de empréstimo, a fim de conceder mais crédito, mas na hora de comprar o imóvel, avalia por baixo e exige o pagamento da diferença entre o empréstimo concedido e o valor da nova avaliação. é certo que as casas de hoje não valem o mesmo, mas valeriam assim tanto no passado? não foi isto que aconteceu com a bolha imobiliária fatal nos estados unidos da américa?

é a opinião dele

jorge roque da cunha, secretário-geral do sindicato independente dos médicos, aproveitou a sua primeira entrevista para expor o seguinte problema: há muitos casos de agressão dos utentes do sns a profissionais de saúde que não passam pela justiça porque as vítimas sentem que não vale a pena reclamar. o assunto é sério. a solução dada por jorge roque da cunha é que me parece no mínimo extravagante. o secretário-geral recomenda que o paciente agressor não seja tratado pelo sns, porque o estado não pode pactuar com a violência. a queixa é extensível ao ministério da saúde por não intervir nestes casos. está tudo mal com esta ideia. nem o ministério da saúde se substitui à polícia e aos tribunais, nem os agressores têm de ser julgados por médicos ou enfermeiros e hospitais. ainda menos, a pena deve ser imoral e tosca como negar cuidados de saúde a uma pessoa. é uma solução que não passa sequer pela cabeça daqueles que anseiam por uma justiça mais firme no país. haja limites para o disparate.