Conto de fadas

O triunfo de François Hollande nas eleições francesas entusiasmou a esquerda europeia e deprimiu os mercados financeiros.

há muita gente conhecedora destas questões que profetiza que hollande, no caso de cumprir as suas promessas eleitorais, vai levar a frança, e talvez a europa, a uma situação catastrófica. outros acreditam que o novo presidente francês não vai chegar sequer a executar uma medida estrutural prometida. a constituição europeia, a alemanha e os países ricos do norte não vão permitir que a frança se separe da política de austeridade aceite por todos. esta última possibilidade é sinistra. significa que a vitória de hollande esteve baseada na fraude de promessas eleitorais impossíveis de cumprir. há, contudo, uma alternativa ao panorama medonho de engodos e mentiras: que o novo presidente seja capaz de cumprir as suas promessas, tenha êxito e assim mostre à europa que existe outra maneira de resolver esta crise geral. era bom, não era? o problema é que parece que os contos de fadas não existem.

filme de terror

enquanto os franceses votavam, os gregos também se deslocavam às urnas, mas desta vez para eleger o caos no parlamento. faz parte dos riscos da democracia ganharem os extremos e perder o centrão, que tem ocupado o poder na grécia nas últimas décadas. os resultados manifestam bem o estado de desespero em que o país se encontra. só ele explica o voto na esquerda radical (syriza) e na extrema-direita (aurora dourada). é preciso estar perto da insanidade para deixar o destino do país nas mãos de pessoas que fundamentam as suas políticas em bodes expiatórios. no caso do syriza, o bode é a troika, como se os gregos pudessem continuar a viver sem pagar impostos, só para dar um exemplo. no caso da aurora dourada, a culpa da miséria é dos imigrantes. devem estar a pensar nos albaneses ilegais no país, que roubam um televisor para sobreviver e são recambiados de volta para a albânia. há poucos anos também havia pobres polacos. foram umas tristes eleições. minha querida grécia, tão descontrolada e atarantada.

há, mas são verdes

holland cotter, crítico de arte do the new york times, escreveu que se tivesse dinheiro nunca compraria a versão de 1895 de o grito, de edvard munch, vendido num leilão da sotheby’s de nova iorque por 91 milhões de euros, provavelmente a um milionário do qatar. para holland cotter, crítico de arte há 40 anos e prémio pulitzer, o mais importante é coleccionar experiências, por isso nunca faria uma colecção de objectos de arte. faz lembrar a célebre fábula de esopo, em que uma raposa vê um belo cacho de uvas numa vinha alta e diz que estão verdes para não admitir que não chega lá. cotter nunca compraria o grito porque não só não tem a fortuna para o fazer, como não vive de uma certa maneira, nem é uma certa pessoa. comprar o grito é parecido com comprar mona lisa. pelo menos 99 % da população não é capaz de imaginar. nos meus sonhos, comprava esta versão do quadro sem hesitar. é a melhor das quatro. seria uma honra ter uma obra de arte que expõe tão intensamente a nossa eterna fragilidade.

temos de falar

é na cena em que eva (tilda swinton) fala com o filho kevin (ezra miller) à entrada do mini-golfe que encontro a tese de temos de falar sobre kevin, um filme de lynne ramsay. eva critica uma mulher obesa que ali se encontra e explica a kevin que é obeso quem come demais. o filho sublinha a dureza da sua observação e eva responde com um seco «olha quem fala». ele riposta com o clássico «tenho a quem sair». a culpa de eva em relação ao filho sociopata de pequenino é manifestada no seu comentário: há culpa em comer demais, tal como ela se sente culpada por não ter sido uma grávida e mãe feliz. kevin, entretanto, tem um bode expiatório à mão para a sua crueldade criminosa: foi rejeitado pela mãe. a própria comunidade, pouco sensível para o destino do marido e da filha, aponta eva como a responsável pelos crimes cometidos pelo filho. como se a rejeição na infância fosse parecido com comer demais, com os efeitos bem à vista. a psicopatia de kevin tem uma explicação misógina, que é aceite pela sociedade.

venha cá

os acontecimentos do dia 1 de maio no pingo doce foram analisados ao pormenor em todos os meios de comunicação e mais algum. quanto a mim, a promoção mereceu uma atenção mediática fora do comum sobretudo por causa dos efeitos da corrida ao grande desconto. como qualquer pessoa civilizada, não gostei de ver as imagens daquele dia. mas também não gostei de ouvir dizer que ninguém esperava a confusão. é no mínimo ingénuo fazer uma promoção com aquele desconto, numa época em que há pessoas a passar por dificuldades muito sérias, e não esperar o caos. a menos que na jerónimo martins pensassem que a informação passada de boca em boca tivesse um alcance mais reduzido. mas teria de ser reduzido ao ponto de nenhuma televisão querer ir lá ver, o que prejudicaria a própria campanha. como sei que não é vergonha ser pobre ou passar por dificuldades financeiras, não vi pessoas humilhadas a sair do supermercado. mas vi desleixo na segurança de funcionários e clientes. correu mal e podia ter corrido pior.