Com a Verdade me enganas

Quando Boris foi chamado pelo governo soviético, para lhe anunciarem que, por ser um exímio proletário, seria um dos cem contemplados com uma viagem a Paris, nem podia acreditar na sua sorte. Fez exames de saúde, foi ensinado a comportar-se, assinou uma declaração comprometendo-se a guardar segredo do que visse. Estava pronto para embarcar. Só…

não só os custos das viagens seriam elevados, como os trabalhadores poderiam sucumbir às tentações capitalistas. mas o governo encontrou uma excelente solução: mandou construir o estrangeiro na rússia, criando uma cidade que, no verão, era uma solarenga paris, e, no inverno, se transformava numa cinzenta londres, habitadas por funcionários do kgb. foi aí que boris passou três dias, numa excursão de proletários escoltada por dois guias. fizeram compras, viram monumentos. não fosse boris ter reconhecido a cara de um condutor de autocarro (o mesmo que, durante anos, o transportou para o trabalho em plena rússia) tudo teria corrido às mil maravilhas.

 

a paris russa

esta história contou-a boris a wladimir kaminer. agora, é uma das que conta kaminer em viagem a tralalá, lançado pela tinta-da-china (a cavalo de ferro já tinha editado militärmusik e russendisko). ao sol, kaminer assegura ter lido relatos de pessoas que construíram a paris russa e lá viveram. a cidade falsa durou pouco: um jornalista holandês viu fotografias da torre eiffel, que lhe pareceu soviética. publicou-as, o ocidente achou-as uma anedota. quem não se riu foi o kgb que, diz kaminer, de imediato mandou demolir a paris russa.

será a história verdadeira? «guardei todas as provas, todos os artigos de jornais, que a fundamentam», diz kaminer. «esse jornalista holandês especializou-se em encontrar histórias estranhas no mundo inteiro. num museu de etnografia numa aldeia espanhola, encontrou um homem negro empalhado. era uma pessoa, viveu, teve pais. investigou, descobriu de onde o homem era natural e conseguiu que o cadáver fosse enviado para a sua terra. o mundo está cheio de histórias extraordinárias».

não é fácil entrevistar wladimir kaminer. a uma pergunta específica, o autor, bem disposto, responde com uma história – que, como as do livro, não sabemos se é completamente verdade – ou uma anedota, em nada relacionadas com a questão. e só é fluente em russo e alemão, fazendo-se acompanhar da tradutora do seu livro, helena araújo, da sua mulher, olga, e de lutz brückelmann, arquitecto alemão a viver em portugal. helena e lutz partilham a função de intérpretes mas, pelos risos e extensão de algumas respostas, é fácil perceber que muito se perde na tradução.

 

objectos voadores baixos

encontramo-los junto à feira do livro de lisboa, onde seria lançado viagem a tralalá, antes de kaminer, também dj (e um dos mais famosos na alemanha) descer à pensão amor para pôr todos a dançar com o dj set russendisko. acabam de chegar de évora, onde lutz lhes mostrou o cromeleque dos almendres. não gostaram. parece que os russos preferem a história contemporânea.

nascido no final dos anos 60, em moscovo, por trás da cortina de ferro, wladimir não podia viajar. imaginava o resto do mundo com a ajuda da televisão que, controlada pelo regime, mostrava a difícil vida ocidental, oprimida pelo capitalismo. estudou dramaturgia. seguiu-se a tropa. «em 1986 entrei no exército e servi no segundo anel da defesa de mísseis e objectos voadores baixos», diz wladimir. «fui eu que deixei passar o mathias rust», afirma, lembrando o jovem alemão que, aos 18 anos, numa avioneta, fintou a defesa aérea soviética e aterrou na praça vermelha. «não foi abatido, em parte, por minha causa. só tínhamos 17 segundos para acertar no atacante» conta, orgulhoso do falhanço. para a semana participa nas comemorações dos 25 anos deste feito.

foi da proibição de sair do país que surgiu viagem a tralalá. «começou como um sonho de uma viagem que não podia fazer enquanto vivia na união soviética», conta wladimir que, em 1990, depois de cumprir o serviço militar, conseguiu partir para a rda, que, no papel, era ainda comunista. apesar da liberdade, por um tempo não se atreveu a sair da segura berlim. «foi desse mundo por descobrir que nasceu o livro. sentado na cozinha berlinense, imaginava as viagens por fazer». aqui, narra as dos seus amigos, que contavam o que viam lá fora. agora, também wladimir já viu. «na primeira metade da vida construímos um mundo de sonhos, impossível de concretizar. depois, demos a volta ao mundo à procura desse sonho. é como ir em busca do paraíso».

 

berlim, cidade esponja

enquanto isso, criou o russendisko, dj set no qual põe as pessoas a dançar com músicas de leste. ao mesmo tempo fez-se escritor. e só de russeandisko vendeu mais de 1,5 milhões de cópias.

diz que não escreve ficção, que não existe. «quando se escreve sobre o godzilla está-se a escrever sobre a sogra. não há ficção». nos seus livros descobrem-se histórias, cheias de humor, sobre os russos emigrados. russendisko, onde conta a sua vida e dos amigos em berlim, acaba de ser adaptado ao cinema.

agora wladimir escreve sobre outras pessoas, de outras nacionalidades. é que hoje o mundo está em berlim. «é uma cidade muito flexível, sem estruturas fixas, capaz de se adaptar a situações novas. se, de hoje para amanhã, a população de portugal fosse toda para berlim, a cidade não ia reparar». wladimir não se assume como russo, alemão ou judeu, mas sim como europeu. «sou fã da união europeia. apesar das dificuldades financeiras e políticas que está a atravessar, o que aconteceu do ponto de vista cultural é irreversível».

rita.s.freire@sol.pt