sabemos que aquilo não vai correr bem. ele é casado, pai de três filhos. ela é solteira. e estão apaixonados.
em e a noite roda, de alexandra lucas coelho (ed.tinta-da-china), essa paixão é-nos contada em retrospectiva, já depois de ter acabado. ambos jornalistas, a catalã ana blau e o belga de ascendência italiana leon conhecem-se em jerusalém, nas vésperas da morte de arafat. ali, naquele cenário de guerra, não há apenas morte e devastação. há a vida de todos os dias, idas ao mercado, crianças a brincar, amantes numa cama.
jerusalém, gaza, ramallah. lugares onde nos habituámos a imaginar alexandra lucas coelho, pelas reportagens que foi publicando no público e pelo seu livro oriente próximo (ed. relógio d’água). agora, a jornalista voltou às mesmas geografias, numa viagem pelo território da memória, naquele que é o seu primeiro romance (já publicou, na tinta-da-china, caderno afegão, viva méxico e tahrir! os dias da revolução).
a história de ana mistura-se com a de alexandra. «emprestei-lhe boa parte das minhas circunstâncias. esse jogo é perfeitamente intencional, podia ter escolhido uma personagem inteiramente diferente de mim», diz a autora ao sol, por telefone, desde o rio de janeiro, onde vive. «queria que esta minha primeira experiência fosse nessa fronteira, nesse risco permanente, que é o jogo com a memória, com a experiência e a transfiguração de tudo isso através da escrita. quis lançar-me à fogueira nessa tentativa». fica a dúvida: onde acaba o vivido, onde começa o construído?
alexandra quis transportar para a literatura mundos que são seus e que diz não encontrar na literatura portuguesa. «as pessoas habituaram-se a olhar para gaza como se gaza só pudesse ser matéria de telejornal. mas gaza pode ser matéria de literatura. pode ser um quarto com as janelas abertas para a paisagem de cimento onde estão dois amantes deitados numa cama porque está muito calor». a ideia, diz, foi abrir um rasgão no cliché de uma paisagem de guerra. «quis transportar toda a aflição, ansiedade, vazio e loucura do desejo de paixão destas duas personagens para cenários que estão quase gastos de lugares-comuns nas notícias».
apesar de não haver aqui reportagem, a autora quis contar o real, no sentido «daquilo que é o osso da vida». «a poesia, para mim, é a forma mais extrema do real», explica, justificando porque não gosta da palavra ficção para definir este seu livro. prefere romance, que vê como um buraco negro que pode absorver tudo o que lhe interessa: «o meu universo, a minha experiência, memória, histórias que me contaram, aquilo que eu vou vendo».
depois, tudo isso é «transfigurado através da escrita, porque é isso que a literatura faz». foi isso que a atraiu para este universo tão distante do jornalismo. «a diferença entre jornalismo e romance é uma diferença de liberdade. como jornalista não sou inteiramente livre. não posso transformar os materiais nem agir sobre eles, obedeço a regras», afirma. «como criadora sou inteiramente livre, devo ser inteiramente livre, o romance deve inventar-se de cada vez, deve inventar as suas próprias regras». fiel a esse espírito, alexandra já tem um novo romance na calha, desta feita ambientado no rio de janeiro. e as regras, essas, vão ser totalmente diferentes.