nascido em praga em 1927, jorge listopad é homem de muitos ofícios: escritor, professor universitário, crítico literário, realizador e encenador, deu à estampa 50 livros de prosa, poesia e ensaio, e encenou cerca de 60 peças de teatro e óperas um pouco por toda a europa. e conhece bem os cantos ao teatro do rossio. não só foi membro da sua direcção nos anos 80, como aí encenou peças como o anúncio feito a maria, de paul claudel, poe ou o corvo, de fiama hasse pais brandão e máquina sensível, de carlos porto.
agora regressa à casa com um monólogo interpretado por josé artur pestana, sobre um homem solitário, que vive no grande sertão brasileiro, e que se vai transformando em jaguar no meio da floresta. o cenário é mínimo: numa sala escura, vemos apenas um homem e três tocos de madeira, ali colocados à laia de mobília.
tudo gira em torno desta criatura mutável, difícil de compreender, a quem foge a humanidade, perdido que está no meio do sertão, tão longe dos homens. foi ali para caçar onças. mas o inimigo que tinha como objectivo matar acaba por se transformar na sua única companhia, na sua família. «me deixaram aqui sozinho, para trabalhar e matar. não deviam. antes eu gostava de gente. agora gosto só de onça», diz a meio da peça.
«começa como um homem, acaba como um animal. é uma espécie de mudança de natureza. acaba [a peça] a ser um animal, tem a obrigação de matar», explica jorge listopad. na ausência de pessoas, a relação com a onça que baptiza de maria maria desenvolve-se. «acaba a ser seu admirador, companheiro e namorado».
mas quem é, afinal, este homem, ali deixado no meio do nada? «uma espécie de lobisomem. está só, e essa solidão, essa natureza selvagem, faz dele um homem na fronteira entre a civilização humana e o mundo dos animais. a peça é sobre a sua metamorfose», acrescenta listopad.
no início da peça ouvimos o homem cumprimentar alguém que chega, que convida a entrar na sua casa. esse alguém nunca é visto. o homem-onça começa um diálogo, no qual vai contando a sua vida, à medida que se vai revelando. o desfecho prevê-se negro, enquanto a interrogação subsiste ao longo das quase duas horas desta conversa. «quem é o outro? não sabemos. quem é o outro que o acompanha, que o mata?», questiona listopad.
a pergunta pode ir, ainda, mais longe. existirá mesmo esse outro ou será apenas produto de uma imaginação delirante e amedrontada? «não sabemos. e fazemos tudo por não saber. porque temos de dar a liberdade máxima a cada um, sobretudo ao actor. ele próprio hesita entre a sua fantasia, se é a polícia que chega porque ele já matou tanta gente, se é alguém que quer roubar o terreno… não se sabe. não se sabe se ele existe ou não existe».
projecto a dois
a peça era um sonho antigo de listopad. ou não fosse guimarães rosa um dos seus escritores de eleição. «a gente tem muitos amores, que duram muitos anos. gosto muito do autor. guimarães rosa é o maior escritor do século xx brasileiro. tenho três textos dele na mesa de cabeceira. repito leituras. descubro de novo. é um dos autores que mais amo», revela listopad. «andei com este texto mais de dez anos como uma possibilidade. sempre à procura de um actor que pudesse fazer o papel», conta.
como tantas vezes acontece, aquilo que procuramos está tão perto que não o vemos. foram muitas as vezes que artur pestana e listopad trabalharam juntos. mas foram precisos anos para que o encenador checo se lembrasse do actor angolano para o papel. assim que percebeu que seria a pessoa indicada, ligou-lhe. artur pestana, conta, foi incapaz de recusar. «listopad convidou-me para fazer isto com o nada inocente pretexto da sua despedida dos palcos. foi uma mentirinha para ver se eu dizia que sim». apesar de ser, à semelhança do encenador, um fervoroso leitor de guimarães rosa, o actor não conhecia o texto. aceitou a proposta de listopad sem saber ao que ia. quando percebeu, era tarde demais para recusar. «disse que sim porque achei que era uma peça com 20 pessoas, em que eu seria o mordomo, entrava, tinha duas falas, depois saía. quando ele me apresentou isto tive um baque. mas pensei: why not? já tinha dito que sim, não ia dizer que não».
um novo crioulo
depois foi um trabalho de perseverança. começaram em janeiro de 2011._juntavam-se uma vez por semana. «sou conservador de pintura mural. é a minha actividade principal. devido ao meu trabalho estou sempre fora. não posso trazer as paredes das igrejas para lisboa, eu é que tenho que ir ter com elas, saio à segunda, volto à sexta. encontrávamo-nos à sexta à tarde, vinha de trás-os-montes directamente para casa do listopad», conta pestana, que diz que do brasil pouco conhece. aliás, o que conhece é o mesmo interior do autor de sertão: veredas. «o meu brasil é o brasil do guimarães rosa. é o veredas (…), vem daquele texto, daquela secura». depois foi preciso encontrar um sotaque. «não trabalhámos nisso, foi natural (…). em bom português lisboeta não funcionava, em brasileiro também não, não sou brasileiro, sou de angola. portanto, foi uma triangulação. é um novo crioulo».
foi um trabalho por amor ao texto e ao palco. não havia contrapartidas financeiras. como afirma listopad, não esperavam receber um cêntimo pelo trabalho. «a peça foi feita sem dinheiro. nem pedimos, sabíamos que ninguém nos daria, ninguém nos subsidia. foi feita porque o actor gostou de a fazer comigo e a minha assistente se apaixonou por isto também».
a guerra do corte
durante vários meses dedicaram-se a cortar o texto. trabalho moroso e difícil. «foi uma guerra», lembra artur pestana. «o listopad queria que eu participasse no corte e costura. mas pedi-lhe para o fazer ele. é que o texto é tão bonito… seria impossível fazê-lo todo, nem eu aguentava, nem o espectador aguentava, seria um espectáculo de quatro horas. cada pedaço que se cortava, custava. mas tinha que ser. é como a troika: acabou, esquece, há que ir em frente. mas sempre com dúvidas. custa muito cortar um texto destes».
tudo a postos, estrearam-se na livraria ler devagar, no lx factory, em outubro de 2011. e acharam que a carreira iria acabar ali. eis senão quando surge o convite do tndmii para trazerem a peça para o rossio. mas esta não é uma simples reposição. muito muda do espaço improvisado de uma livraria para uma sala de um teatro. «lá tivemos condições técnicas piores. mas, por outro lado, havia uma grande intimidade, apesar do barulho da rua. aqui vamos ter um teatro mais clássico, do ponto de vista formal, isso significa que há outros obstáculos, o próprio artur pestana, aqui, tem que convencer os espectadores de modo diferente. lá, fizemos uma encenação que recusa todos os elementos teatrais normais. tudo era feito como um teatro nu. aqui, de repente, estamos num teatro que tem as suas regras, as suas cadeiras, a sua iluminação, os seus técnicos. é outro grau de aventura», assume listopad.
aventuras essas que o encenador não quer deixar de ter: «tenho várias peças reservadas. há coisas para as quais estou à procura da ocasião certa. agora é, naturalmente, cada vez difícil, porque não há meios. não se pode fazer isto de graça, como fizemos agora. não quero que alguém utilize isso contra nós».