Miguel Ribeiro: ‘Há uma orfandade na TV’

Deixou a rua, tornou-se pivô e ganhou o bichinho do imprevisto. Mas em Fora d’Horas, despiu tudo isso. Acha estranho que a SIC Notícias tenha perdido a liderança dos canais pagos. «Oiço falarem muito do nosso trabalho».

o miguel que apresenta os jornais da sic notícias é diferente do miguel do programa fora d’horas. afinal, qual é o seu registo?

durante meses, antes de o programa começar, tive algum receio de não conseguir desligar do meu registo mais noticioso. hoje, percebo que tenho as duas facetas. há aquela a que as pessoas estão mais habituadas, a de pivô, engravatado e a ler notícias ou a entrevistar políticos, e há esta nova que me levou a despir tudo isso e a fazer entrevistas de uma forma mais descontraída e com tempo. no fora d’horas, não só tenho tempo como posso abordar temas que habitualmente não preenchem espaço nas televisões.

os seus temas são quase sempre a música ou a literatura, e há programas que tratam dessas questões, até de uma forma mais intimista.

a descontracção e a informalidade existem em muitos programas. agora, as temáticas e ter tempo para falar nelas, não. um tema de cultura alternativo, para uma imensa minoria, não faz parte desses programas. por exemplo, não conseguimos trazer um escritor à televisão para falar sobre a forma como esquematiza uma história, como lida com a agressividade das personagens… num programa comercial ninguém quer saber disso. mas eu sempre achei que havia pessoas que sentiam o mesmo do que eu – uma orfandade na televisão em determinadas áreas. e a verdade é que recebo um feedback muito grande, no facebook, no twitter, na rua.

sabe qual é a sua audiência?

o pedro adão e silva, que faz uma rubrica no programa, pergunta-me todas as semanas por isso, mas eu não faço ideia e nem quero saber. se começar a ter o peso das audiências nos ombros, vou pensar de maneira diferente. e eu não me quero condicionar; quero manter-me fiel ao que pensei fazer naquele programa desde o começo.

apesar desse desprendimento, lamenta que a sic notícias tenha deixado de ser o canal mais visto da televisão paga?

lamento e acho estranho, acima de tudo, que os canais que passaram a liderar o cabo sejam aqueles que são.

a disney ou, por vezes, a tv record?

a amostra é o que é e dizem que é mais próxima da realidade. eu acredito, mas acho estranho, porque entro nos cafés e vejo a televisão ligada noutros canais, porque ouço as pessoas falarem muito do trabalho da sic notícias. tenho sérias dúvidas de que haja este tipo de proximidade com os canais que o novo painel diz serem os mais vistos.

começou a sua carreira numa rádio pirata. sempre quis seguir jornalismo?

comecei a sentir o bichinho da comunicação na rádio valpaços e, no momento de decidir a formação, percebi que o jornalismo seria o caminho certo. se bem que, olhando para trás, poderia ter tirado outro curso, como o de história. farto-me de gastar dinheiro em livros de história, e não são baratos.

da sua geração, houve muitos jornalistas a começarem nas rádios locais. tem pena que os mais novos não tenham a oportunidade de ganhar ‘estaleca’ na rádio?

lamento que não tenham a oportunidade de trabalhar num ambiente de absoluta democracia e em que tudo era permitido.

a que ‘tudo’ se refere?

quando se atribuíram as primeiras licenças de rádio, percebeu-se que havia ali um veículo muito eficaz, muito forte, muito intimista, diferente da rádio que se fazia em portugal, a renascença e a antena 1. de repente, as novas rádios abriram espaço para que uma nova geração partilhasse os seus gostos com o resto do país. e tínhamos a noção de que havia uma grande avidez por uma comunicação diferente.

como é que aproveitou essa liberdade na rádio valpaços?

eu tinha um programa, aos sábados, às 9h da manhã, que era feito de gravador na mão, a partir das conversas que ia tendo com o senhor da mercearia ou o senhor do quiosque, desde que saía de casa. a pessoa que fazia o programa comigo fazia o mesmo e, quando chegávamos à rádio, púnhamos aquele percurso integralmente no ar. isso seria impensável hoje.

mas as rádios têm procurado fazer essa reaproximação ao ouvinte através de uma maior ligação com os locutores.

na rádio, na televisão e na imprensa há uma necessidade absoluta de renovação, porque quando a comunicação se torna muito distante do ouvinte ou do espectador, as pessoas desistem. não são burras.

quando começou na televisão, fazia reportagens para a sic. por que quis deixar a rua e integrar os estúdios da sic notícias?

nunca quis bem deixar a rua… aconteceu que achei graça a um desafio que a cândida pinto me lançou, oito ou dez anos depois de entrar para sic. naquela época, ela estava a convencer meia dúzias de pessoas da redacção a fazerem um curso de pivotagem – o joão adelino faria, o augusto madureira, o joão ferreira, a ana de freitas, a sofia cerveira, a sofia marçal, eu… quando terminámos, disseram-me que o fazia bem, e depois ganhei o bichinho da pivotagem.

que bichinho é esse?

é o directo, o não haver uma rotina, o facto de os alinhamentos serem sempre diferentes, depois, são as entrevistas, as notícias de última hora… há uma série de imprevistos que nos dão uma adrenalina que não se consegue na informação diária. e isso é viciante.

no fora d’horas, tem uma rubrica que faz sucesso. anda com uma vespa pela capital, à procura do que indigna as pessoas. já recebeu propostas para fazer o mesmo noutras cidades?

não esperava que tivesse tanto sucesso com essa rubrica, mas é daqueles fenómenos de comunicação de proximidade que resultam, porque são genuínos. há de facto muita gente a pedir para eu ir ao porto, a coimbra. dizem-me: ‘vá lá, meta-se no comboio’. é logisticamente impossível, mas nunca se sabe se, qualquer dia, não ponho a vespa num atrelado e vou dar a volta a portugal.