Bairro operário renasce com 600 alunos angolanos [fotos

As sirenes das fábricas do Barreiro há muito que não passam de arqueologia industrial. E a Torre do Relógio já não faz apressar as rotinas do envelhecido bairro operário de Santa Bárbara. Aos poucos ex-trabalhadores da CUF, que ali vivem, sobejam vagar e solidão. Mas, desde Março, centenas de estudantes angolanos estão a ‘revolucionar’ a…

«antes, dizíamos que isto era um monte alentejano, onde nem um cão se ouvia», solta isabel nascimento, de 72 anos, enquanto estende naperons brancos, à porta do n.º 22 da rua lawes, casa pela qual paga uma renda de 1,50 euros. «agora, é só pretos; é uma escuridão», diz, na brincadeira.

esta septuagenária reside há 45 anos no bairro centenário que agora está a ser transformado em residência de universitários e que, em breve, terá um total de 600 alunos angolanos – que irão entrar no ensino superior no próximo ano lectivo. o número de antigos moradores do bairro não chega aos 30.

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cumplicidade dos moradores com a nova vizinhança

um dos requisitos impostos para ali se morar, no século passado, era ser-se casado pela igreja. mas ali sabia-se que, além do compromisso marital de ‘juntos até que a morte nos separe’, também o casamento com o trabalho era duradouro. «as pessoas tinham emprego para a vida, mas trabalhavam muito, era muito duro», relembra o presidente da câmara do barreiro, carlos humberto carvalho.

ao lado da casa que isabel nascimento partilha com o marido (ex-operário da cuf), moram agora dez angolanas. «começaram por estar aqui uns rapazinhos angolanos, educados», conta isabel. a mudança de género na casa vizinha trouxe um senão: «as raparigas são mais barulhentas que os rapazes».

«há uns tempos, eram quatro da manhã e elas corriam na rua, a gritar, desalmadas», lembra isabel. mas apesar das dificuldades iniciais de adaptação à nova vizinhança, começam a desenhar-se cumplicidades: «eles já nos chamam de avó ou mãe».

«houve um rapaz com quem lidei, que morava aqui ao lado, no n.º 20, que começou a tratar a minha mulher por mãe», conta josé luís godinho, que distrai os 74 anos a ler o jornal à porta de casa, na companhia do cão.

este antigo operário, residente no n.º 18, observa que os jovens que ali chegaram «não estão preparados para viver sozinhos» e considera exagerado morarem até 12 pessoas num t3. josé godinho refere que tanto ele, como os outros moradores (todos acima dos 70 anos), têm dado conselhos aos estudantes, quer ao nível da vida doméstica, quer em relação aos perigos que podem encontrar no bairro vizinho, conhecido pelo tráfico de droga.

um dos ‘choques’ culturais que mais saltou à vista dos antigos operários foi o facto de os jovens lavarem a roupa e a porem enxugar no chão, na rua. o empréstimo de molas tornou-se, por isso, habitual naquela rua.

o ‘filho’ angolano do casal godinho é o acácio, de 19 anos. enquanto o sol conversa com aquela família, o jovem passa para fazer uma visita. «sinto falta destes meus pais portugueses; sinto-me muito acarinhado aqui», confessa o rapaz, com um sorriso rasgado.

acácio chegou de luanda a 2 de abril. veio com o intuito de tirar o curso de manutenção aeronáutica e considera ideal morar na pacatez do bairro de santa bárbara: «acho este o lugar apropriado para estudar de verdade; se estivesse a morar em lisboa, haveria mais distracções».

acácio e os colegas estudantes vieram para portugal ao abrigo de um protocolo assinado – na escola superior de tecnologia do barreiro – entre a angolana universidade de belas, a empresa coração tropical e a câmara municipal do barreiro. o objectivo é dar oportunidade aos estudantes que não conseguem colocação nas universidades angolanas.

as saudades da família são comuns a todos os estudantes com quem o sol falou. e, por isso, estranham o facto de os idosos do bairro receberem poucas visitas dos filhos.

 

ideias feitas sobre portugal

«foi muito complicado deixar a família, os africanos são muito unidos; mas aqui vemos os moradores muito sozinhos, estranhamos e perguntamos-lhes pelos filhos», partilha manuel catumbila, de 26 anos, que veio para, no próximo ano lectivo, começar a estudar gestão aeroportuária, no instituto superior de educação e ciências, em lisboa. «notamos que os idosos estão sempre à procura de conversa», acrescenta.

«custou muito, mas muito, deixar os amigos e a família. foi fácil decidir, difícil foi sair (de luanda). chorei muito», recorda jane, de 20 anos. mas a vontade de tirar o curso de enfermagem falou mais alto. e em portugal conheceu etelvina, de 23 anos, que assumiu o papel de mãe das colegas de casa. «já somos uma família», admite jane, que vive com dez colegas, entre elas, etelvina, tchissola e otília.

jane não conhecia portugal e trazia a pior das referências: «sempre tive má impressão dos portugueses, sempre achei que eram cínicos, ignorantes, frios. e vim preparada com uma ideia: ‘não tenho de ser amiga de nenhum branco, tenho de me formar e voltar a angola’», confessa ao sol.

mas, aos poucos, as ideias feitas foram-se estilhaçando: «estou a gostar do país, esperava que fosse pior. com as notícias sobre a crise, pensei que fosse encontrar tudo podre e só pobrezinhos, a passar fome». «não pensei ver um mercedes e chego cá e vejo logo um com quatro tubos de escape; e aqui não se vê poeira, água parada, é tudo limpo, enquanto que em angola é tudo sujo», ilustra.

as críticas de jane direccionam-se também aos próprios angolanos: «30% ou 40% dos angolanos não gostam de trabalhar, só se puxarem por eles; mas os mais novos já têm uma maneira de pensar diferente».

por essa razão, saem do país para obterem qualificações. e, aí, as primeiras opções recaem sobre portugal. «os meus pais é que me deram a ideia de vir estudar para portugal; sabem que a formação é melhor cá», explica tchissola, que aos 17 anos, veio para o barreiro, com a irmã gémea. «o ensino em angola é muito básico e as universidades privadas olham muito para o lucro e é muito difícil entrar na universidade do estado», explica a futura estudante de medicina, que por mês irá pagar aproximadamente 450 euros à universidade.

jane – que por mês irá gastar cerca de 270 euros, por ser bolseira comparticipada – garante ao sol que, em angola, o mérito nada conta para ingressar no ensino superior: «há muita corrupção. para entrar na universidade lá, é preciso dinheiro, influência e sorte».

liliana.garcia@sol.pt