‘Um emigrante sente-se estrangeiro em todo o lado’

Adriana Lisboa, vencedora do Prémio José Saramago 2003, emigrante por amor, que em tempos tocou flauta e hoje se dedica a ajudar refugiados de guerra, tem novo livro. Azul-Corvo é uma história de amizade que se aventura nos meandros da Guerrilha do Araguaia, movimento comunista de combate à ditadura militar no Brasil, em plena Amazónia.

como nasceu a ideia para azul-corvo?

queria escrever um livro sobre pessoas que se tornam amigas por circunstâncias da vida. e criei a personagem de vanja, filha de uma brasileira e de um americano que nunca conheceu. quando perde a mãe, aos 12 anos, decide ir para os eua em busca do pai biológico. e vai ter com um ex-marido da mãe, fernando, um ex-participante da guerrilha do araguaia, que vive expatriado nos eua. juntos, vão tentar encontrar o pai dela. nessa empreitada fazem amizade com carlos, um emigrante ilegal salvadorenho de 9 anos. e os três partem numa road trip pelo oeste dos eua em busca do pai biológico da vanja. como em todas as buscas, aquilo que se encontra não é aquilo que se procurava. é até mais interessante.

em que se inspirou para criar fernando?

é um emigrante, desiludido com a vida, solitário. comecei a construir o seu passado e cheguei na guerrilha do araguaia._quis criar um personagem que fosse um dos muitos desgarrados pelo mundo devido à ditadura do brasil. não queria um ex-participante da resistência urbana, é um tema sobre o qual já se escreveu bastante. a guerrilha do araguaia nunca foi abordada em livros de ficção. é, ainda hoje, passados quase 40 anos, um tabu da história oficial brasileira. ainda não se sabe tudo. foi intensamente censurada durante a época da ditadura militar e até depois.

porquê?

foi um movimento muito peculiar. eram 79 guerrilheiros, combatidos por 5 mil soldados do exército. guerrilheiros que no fim foram presos e barbaramente executados. muitos já se tinham rendido. dos 79, 50 foram dados como desaparecidos. foi um episódio muito complicado da história do brasil. muitos deles continuam desaparecidos. a literatura brasileira das últimas décadas é muito focada na experiência urbana. como a guerrilha aconteceu na área do amazonas, suponho que nunca tenha despertado interesse.

como fez a pesquisa?

tive contacto com um ex-guerrilheiro, carlos pais, e tive ajuda de uma jornalista, taís moraes, que escreveu um livro imenso, operação araguaia, onde reconstitui a guerrilha e traz a público o que já foi liberado, pelo exército, dos arquivos secretos da guerrilha. é a fonte de informação mais actualizada sobre a guerrilha. conversámos bastante.

se carlos é uma personagem desgarrada, também o é vanja. o que lhe interessou na não-pertença?

mudei-me para os eua há cinco anos, fui emigrante no final da adolescência durante um período em frança. essa questão de pertencer ou não a um lugar vem estando na minha vida há muito tempo. ao ser emigrante, a gente se torna estrangeira não apenas no país onde vive mas no nosso país também.

em que sentido?

quando vou ao brasil sinto que já não sou totalmente parte dele. mas também não sou totalmente parte do lugar onde vivo agora. é um lugar bastante rico para se pensar nas identidades que criamos na vida: com que é que a gente se identifica, o que é que a gente chama de raízes, de casa, de nação, de país?

a vanja vai para denver. baseou-se na sua experiência para escrever?

parte sim, parte não. tudo o que escrevemos é sempre parte da nossa experiência, é a visão que temos do mundo. quis escrever sobre essa região porque é fisicamente impressionante. e é um lugar muito pouco conhecido. quando me mudei para cá não sabia o que ia encontrar: não era uma região que povoasse o meu imaginário. fiquei muito surpresa pela imensidão. pega-se no carro, vai-se por linha recta e não há nada em lado nenhum. parece que não vai acabar nunca, é cinematográfico. uma imensidão de planície, céu e montanhas, que nos fazem reconsiderar a nossa dimensão humana.

por que foi para denver?

tinha estado nos eua duas vezes, uma delas logo depois do 11 de setembro. aquela obsessão com segurança nos aeroportos me incomodou a tal ponto que jurei nunca mais ‘botar’ aqui os pés. depois conheci um brasileiro que morava aqui, casámo-nos e vim por causa dele. o motivo de viagem mais banal do mundo.

o que quis explorar no tema da amizade?

a amizade talvez seja a relação mais valiosa que podemos construir na sociedade. o facto de esta ser uma amizade improvável só o sublinha: como é que a gente faz para ser amigo e solidário mesmo com quem é tão diferente?

este livro é inspirado num poema de marianne moore, the fish. os seus livros anteriores também eram inspirados em poesia. porquê?

a poesia é uma grande inspiração para a escrita da prosa. pelo que me ensina de ritmo e de atenção às palavras e pelo que os poetas me dizem. faz parte do que sou e do que escrevo.

como foi narrar pela voz de uma adolescente?

tenho um filho com 13 anos, sei o quanto eles ocupam uma espécie de ‘entre lugar’: não são crianças, não são adultos. têm uma espécie de arrogância e um olhar crítico para o mundo dos adultos, questionam hábitos ruins que incorporámos nas nossas vidas. a vanja tem um humor ácido, se julga uma pessoa forte e capaz de lidar com a vida. foi a narradora que mais gostei de construir até hoje.

como tem evoluído a sua escrita?

tenho vindo em busca de uma maior simplicidade: como ter um texto criativo, surpreendente, que traga imagens novas, sem ser um rebuscado formalmente?

já está a escrever um novo livro?

vai-se chamar hanoi. vou ao vietname no mês que vem para uma pesquisa de campo. há uma história de emigrantes vietnamitas, filhos de soldados americanos e mulheres vietnamitas durante a guerra do vietname. é uma geração que não pertencia a lugar nenhum. eram discriminados no vietname por serem filhos de soldados inimigos. depois de uma década conseguiram emigrar para os eua, onde também não tinham lugar.

foi tradutora, flautista, cantora, já escreveu para cinema… ainda toca flauta?

não, parei há algum tempo. e este ano parei de traduzir, vinha-me tomando muito tempo, físico e mental. mas faço voluntariado para uma organização em denver que recebe e lida com refugiados. é um trabalho que tem tudo a ver com as minhas preocupações temáticas na literatura. são pessoas que vêm de zonas de conflito como o butão, mauritânia, mali, que vão tentar reconstruir a sua vida aqui._e muitas vezes vêm de situações muito extremas, de grande violência, pobreza. e vão, na medida do possível, tentar reconstruir a sua vida aqui. ?

rita.s.freire@sol.pt