Mercearias combatem a crise levando compras a casa

Muitas mercearias de bairro conseguem resistir à crise porque tratam os clientes como família: levam as compras a casa, tratam dos seus assuntos pessoais e têm, sempre a postos, um «banquinho da amizade» para combater a solidão.

na mercearia do senhor antónio, no bairro lisboeta de benfica, há mesmo um velho banco de pau guardado debaixo do balcão para que os fregueses se instalem. «é o banquinho da amizade. uma pessoa está um bocado cansada, por causa da idade, e o senhor antónio puxa sempre o banquinho para as pessoas. tem muito amor por nós», conta maria natália, de 86 anos, à agência lusa.

maria vive no prédio em frente ao minimercado e as pernas «já não ajudam a ir às compras», mas orgulha-se de poder contar com o senhor antónio e a dona adelina, que lhes levam «as comprinhas a casa e fazem companhia».

no negócio do senhor antónio ninguém deixa mercadoria para trás, mesmo quando as compras são muitas: «a adelina (empregada) saiu ainda agora com dois sacos, porque a senhora não podia com eles e, como é evidente, não ia voltar cá novamente», diz o merceeiro.

pelos serviços que presta, dona adelina recebe muitas vezes pequenas gratificações, mas garante que o que a motiva é sentir-se útil: «eu vou lá, arrumo as coisinhas, converso um bocadinho, guardo as coisas que levo no frigorífico… eles ficam muito contentes e isso é muito bom».

além das compras, também ajudam a vizinhança quando chegam cartas difíceis de traduzir ou quando aparecem contas para pagar. «ainda ontem fui pagar a luz a uma senhora que não tinha multibanco. são coisas muito básicas. quando precisam de qualquer coisa pedem-nos apoio e nós damos. isto aqui é uma família», defende o merceeiro.

numa ruela do bairro de alvalade, o cenário repete-se. na frutaria da cristina há sempre clientes para aviar: alguns entram pela porta, outros chegam pelo telefone. «há pessoas mais velhas que ligam a encomendar as coisas e depois o meu marido vai lá levar-lhes», conta entre dois telefonemas.

«as pessoas sentem-se muito sós, precisam de alguém e nós estamos cá para ajudar», reconhece cristina, assumindo a sua mercearia como «o ponto de encontro» dos moradores.

tal como em benfica, em alvalade também há uma maria de 86 anos que é frequentadora assídua da mercearia. maria helena lourenço aparece religiosamente todos os dias. «vou para lá à tardinha. ela põe lá um banquinho e estou lá um bocado até me apetecer vir para casa», diz a senhora que também recebe as compras em casa.

entre 2001 e 2010, o número de mercearias existentes no país passou quase para metade, de pouco mais de 21 mil para 12.036. no mesmo período, o volume de negócios caiu 37% (de 938 milhões para 591 milhões de euros), segundo dados da consultora nielsen.

os comerciantes sabem que os moradores mais novos dos bairros só se lembram das mercearias quando se esquecem de comprar qualquer coisa nas grandes superfícies. mas este é também um cenário que parece estar a mudar.

«neste momento, o comércio alimentar de proximidade é talvez aquele que está a conseguir resistir melhor. e isso tem a ver com três factores: o envelhecimento da população, que dificulta as deslocações; a falta de poder de compra, que leva as pessoas a comprar pouco de cada vez e, o (aumento) do preço dos combustíveis, que limita as deslocações», sublinha o presidente da confederação do comércio e serviços, joão vieira lopes.

de acordo com a confederação, a crise financeira está a provocar mudanças no «hábito» de passear ao fim-de-semana nas grandes superfícies e já se nota «em muitas zonas, um certo regresso ao comércio de proximidade».

maria helena e maria natália, ambas nascidas há 86 anos, são do tempo em que todas as compras se faziam na mercearia. chegaram a frequentar os grandes supermercados, mas agora não querem ouvir falar nisso. gostam das «suas» mercearias.

«a minha filha às vezes diz que me traz o que é preciso do supermercado, que é mais barato, mas eu digo-lhe que não deixo de gastar aqui do vizinho porque já nos conhecemos há muitos anos e ele faz-me muito jeito, traz-me a casa tudo o que preciso. eu peço, ele assenta e vai lá levar», conta maria natália.

lusa/sol