depois de quase uma década como mero ‘guardião’ da estabilidade de preços, a instituição sedeada em frankfurt ganhou tarefas impensáveis antes de rebentar a crise das dívidas soberanas em meados de 2010: compra dívida pública aos estados-membros, empresta biliões em dinheiro barato e ilimitado aos bancos, é ‘armazém’ de activos tóxicos e, até final do ano, vai ficar responsável pela supervisão dos bancos nacionais na europa.
além do crescente poder, o bce assume-se, cada vez mais, como a única ‘voz’ com credibilidade no meio da actual crise face à inacção e descrédito a que têm sido votadas outras instituições, como a comissão europeia, o parlamento europeu ou a autoridade bancária europeia – esta última responsável pelos malogrados testes de stress que não detectaram os buracos na banca irlandesa e espanhola, por exemplo.
o único credível para berlim
não foi por acaso que a ‘moeda de troca’ pedida pela alemanha – no último conselho europeu, no final de junho – para aceitar que os fundos de resgate assistam directamente os bancos – reclamada por espanha e itália – fosse que o bce ficasse com a supervisão do sistema bancário. a razão? só com um ‘selo’ de garantia do bce na supervisão os bancos holandeses, alemães ou austríacos estão dispostos a emprestar dinheiro aos bancos espanhóis ou portugueses.
na troika (conjunto de credores internacionais, que junta ainda a comissão europeia e o fundo monetário internacional), por exemplo, o bce é sempre o membro mais discreto, o que raramente fala, o que nunca se encontra com jornalistas. a discrição do banco central é um dos factores pelos quais a reputação de draghi ou trichet, junto dos mercados e dos países, está a milhas da de barroso ou lagarde.
durante os primeiros oito anos do euro, o papel do bce cingiu-se a manter a inflação controlada, ou seja não permitir que os preços subissem mais que um determinado nível (neste caso 2%). geria a taxa de juro de referência na região, diminuindo-a para fazer crescer a economia ou subindo-a quando era necessário travar o crédito e desacelerar o produto.
um banco tóxico
com o contágio da crise a alastrar além da periferia da europa e os mercados de financiamento interbancário a fecharem-se, o bce assumiu uma das novas tarefas: tornar-se na fonte última de dinheiro de todo o sistema financeiro. só nas duas últimas operações de cedência de liquidez, emprestou 1,1 biliões de euros em crédito barato (juro de 1%) aos bancos europeus. ou seja, quatro vezes o que já foi gasto com os resgates da grécia, portugal e irlanda e uma verba superior aos três fundos de resgate europeus juntos.
a maioria dos bancos da periferia europeia depende do bce para continuar a funcionar – as instituições portuguesas ‘devem’ 60 mil milhões de euros de frankfurt e as espanholas quase 200 mil milhões, por exemplo.
mas este financiamento tem um ‘preço’ que poderá vir a ser perigoso para o bce, devido aos chamados colaterais que lhe têm caído ‘no colo’. ou seja, as garantias que exige aos bancos em troca do crédito barato.
acontece que no início da crise, este activos tinham de ter uma qualidade mínima – por exemplo um rating acima de determinado nível. com a degradação da crise, a queda das notações e o resgate de mais países, os bancos começaram a ficar sem colaterais de qualidade para entregar ao bce. a solução foi frankfurt ‘fechar os olhos’ e aceitar garantias com cada vez maior risco e de duvidosa qualidade: dívida pública grega, créditos à habitação e consumo das famílias portuguesas e espanholas. «o bce tornou-se no maior bad bank da europa», refere ao sol, karel lanoo, do centre for european policy studies (ceps), o maior think tank (centro de estudos económicos) de bruxelas.
além de aceitar este tipo de colaterais, a instituição também começou a comprar dívida pública nos mercados secundários dos países em dificuldade na zona euro – embora não o faça há 19 semanas – para tentar baixar os juros e a pressão dos investidores. desde maio de 2010 até hoje, o bce já comprou mais de 210 mil milhões de euros em dívida pública, segundo dados do banco central.
crescente poder na europa
contas feitas, ao mesmo tempo que ganhou mais poder e credibilidade, o bce tornou-se numa instituição muito mais arriscada – e tóxica – carregada com milhões e milhões de activos que poderão não ser pagos se a crise do euro se continuar a deteriorar. esta semana, surgiram rumores de que a grécia precisa de fazer uma nova reestruturação da sua dívida que envolve agora os credores institucionais e que só o bce poderá perdoar até 40 mil milhões de euros.
o grande salto do banco poderá estar ainda no futuro. até final do ano, a equipa de draghi poderá (em que está vítor constâncio, ex-governador do banco de portugal) ficar com a incumbência da supervisão dos bancos nacionais na zona euro. o quadro legal e a abrangência de poderes do novo supervisor está ainda por decidir, mas é certo que irá retirar funções aos reguladores nacionais.
em princípio, o bce irá controlar as contas dos maiores bancos de cada país e determinar o modo como se liquida uma instituição. o banco de portugal, por exemplo, poderá reportar a actividade de instituições mais pequenas e ficará com tarefas como a autorização de abertura de balcões.
e há quem aponte o bce como a única instituição que poderá salvar o euro da extinção, funcionando como financiador dos estados de última instância como a fed, o seu congénere norte-americano. a sua capacidade de criar dinheiro – função de um banco central – poderia ser uma alternativa mais rápida e, sobretudo, eficaz face ao reforço dos fundos de resgate, cujo processo tem de passar por 17 parlamentos com atrasos sucessivos. ontem, mario draghi, anunciou que irá «fazer tudo» para salvar o euro, um projecto que diz ser «irreversível». «acreditem em mim, será suficiente», acrescentou.
bce não pode salvar todos
guntram wolff, um dos directores do instituto bruegel, think tank sedeado em bruxelas e cujo novo presidente é o ex-presidente do bce, jean-claude trichet, adianta ao sol que «o bce não pode financiar nem salvar toda a gente». já charles wiplosz, num artigo publicado no centre for economic policy research (cepr), adianta que, na realidade, o banco central tem poder e capacidade para «resgatar» a zona euro, mas não «repará-la». «só os governos poderão fazer isso», acrescenta o professor do graduate institute, em genebra.