alguns são amigos, vêm jantar a minha casa. pisam e repisam os mesmos temas. não mudam de opinião nem toleram palavras contrárias. falo-lhes do tempo. recordo-os de si próprias. ainda ontem.
ainda ontem recordei a alguém a história de francisco matos lobo, o último enforcado em lisboa. tinha-a bem presente porque o meu amigo miguel romão – que numa das últimas legislaturas tornou-se o mais jovem director-geral da história da administração pública – ma contara ao detalhe num jantar em frente à pensão do amor. no seu doutoramento, praticamente concluído, faz a história do modo como o estado puniu os seus condenados ao longo de um dado período histórico… creio que entre meados do século xviii e o início do estado novo. as prisões, as rotinas dos presos, as penitências, as deportações, a salvação ou a redenção são matérias de que me tem falado nestes últimos anos.
durante uns anos os presos eram obrigados a uma reclusão de absoluto silêncio. visitavam o pátio uns minutos por dia sempre de cabeça coberta. desafiar o silêncio era punido de um modo brutal. tudo para o seu bem; o fundamental era salvar-lhes a alma, expurgando-a do mal por uma forçada meditação. em muitos casos era tão intensa a circunspecção que os pobres diabos acabavam no hospício. a loucura, pois. temos opiniões sobre ela, medos e até projectos, mas a loucura que em nós vive não é o que gostaríamos que fosse. acreditamos que a temos de rédea curta, chegamos até a desafiá-la, mas depois percebemos que há divisões dentro de nós que não conhecemos nem sequer imaginamos.
ainda ontem alguém voltou a defender a pena de morte para casos extremos. com os mesmos argumentos de sempre, mas sem a preocupação de salvar almas ou de redenções poéticas, coisa manifestamente de outros tempos.
recordei a penitência do silêncio e propus um brinde ao último enforcado em lisboa, um jovem que chocou a sociedade bem-pensante de meados do século xix. e chocou porquê? sobretudo porque era rapaz bem posto, universitário, culto, bem-falante e bonito. se porventura fosse analfabeto e bom selvagem talvez a discussão sobre o assunto não teria sido tão rápida e a abolição menos ainda.
a história está contada em muitos registos. os lisboetas saíram à rua para ver com os seus próprios olhos o rapaz. porque não era possível que os jornais tivessem razão, francisco não podia ser tão perfeito assim… um homem daquela condição seria incapaz, por motivos de cega paixão, de matar adelaide kierot, francesa ao que se sabe, mais a sua filha, uma criada e o próprio cão. a casa na rua de são paulo transformou-se num horrendo banho de sangue, o sempre inefável júlio dantas haveria de a descrever na lisboa dos nossos avós.
mas francisco matos lobo fê-lo mesmo. estraçalhou-as à faca e foi condenado à morte por enforcamento e a um acto de contrição que haveria de ficar para a história. no limoeiro obrigaram-no a missas e incensos e em cima do lombo puseram-lhe uma túnica branca e o baraço que depois o estrangularia. não sabemos se por estar abafado ou se pelos fumos, o rapaz não só se agoniou como teve espasmos incontroláveis, um ataque que obrigou a polícia a amarrá-lo a uma cadeira. sentado e a espumar pela boca, num espectáculo descrito como dantesco, deu-se aos olhos da populaça que cobria as ruas. quatro deportados das galés carregaram a cadeira pela sé, rua do comércio, rua do arsenal, pararam em frente à casa onde tudo aconteceu, seguiram pela rua da boavista e chegaram ao cais do tojo, onde já lhe saía sangue pela boca. o pobre padre, antes do enforcamento, não resistiu ao quadro de miséria e acometido de uma apoplexia morreu ali mesmo. outro cura tomou o lugar do desafortunado e a meio da extrema-unção tombou desmaiado. sem mais demoras penduraram-no, mas ao que se diz não morreu logo. demorou. um dos carrascos, nervoso por não conseguir um trabalho limpo, tropeçou e saiu de perna amarrada.
ainda ontem brindei ao rapaz. o último enforcado de lisboa que, por ser letrado e bem-falante, coisa rara nessa década de 1840, levou a uma discussão sem precedentes na sociedade portuguesa. por isso e porque, mistura sempre explosiva, a igreja considerou que talvez deus não quisesse mais mortandade. quem porventura tenha estado nas ruas onde o rapaz passou preso a uma cadeira, ficou com a dúvida na cabeça – a morte do padre, a forca a falhar e tudo o resto eram provas irrefutáveis da pouca vontade divina.
foi a ele que brindei quando alguém voltou a defender a barbárie. ao francisco e à história contada em detalhe pelo miguel numa esplanada do cais do sodré, a poucos metros de onde tudo aconteceu 150 anos antes. a caminho de casa pensei na procissão, imaginei as pessoas à beira do caminho a gritar para espantar o mal. acontece tantas vezes, não é? muitos continuam a preferir fugir do mal e não correr para o bem. continuam a preferir perder tempo em receios e ameaças. uma fuga ao inferno que os extenua de cansaço e torna impossível o reconhecimento das coisas boas quando elas se aproximam.
