esteve
às portas da morte devido a um problema vascular. mas continua a fumar.
é um
vício antigo, tenho dificuldade em deixar. chegava a fumar três maços por dia.
durante a semana, no hospital, depois do almoço vou ao jardim e fumo um ou
dois, às vezes três. depois do jantar, outro. no total do dia não fumo mais de
quatro. a médica disse-me que se fumasse até cinco não havia problema. quando
venho a casa, ao fim-de-semana, exagero. mesmo assim não chego a fumar um maço
por dia.
há um ano teve um
aneurisma na aorta.
estive a morrer. com a fisioterapia tenho
vindo a recuperar. estou internado no hospital do mar. estou com esperança de
alcançar o meu objectivo: voltar a andar. dou uns passos com o andarilho. faço
umas marchas relativamente longas.
operou o aneurisma
mas teve uma septicemia.
depois da operação estive três dias no
hospital e estava bem. depois surgiu a septicemia, que foi terrível. estive em
coma muito tempo. estava no pulido valente, onde fui operado. depois vim para
este hospital recuperar e comecei a falar e a pensar. não fui afectado na
cabeça. quer dizer, ao princípio estava completamente balhelhas. mas fui
recuperando. e estou numa fase avançada da recuperação.
mal recuperou
começou a trabalhar?
sim. é assim: se venho tenho sempre muito
trabalho, portanto o melhor é não vir. o rodrigo francisco [director-adjunto]
tem garantido a direcção do teatro durante este tempo mas não estou
completamente afastado.
liga a saber como as
coisas estão?
o rodrigo vai todos os dias ao hospital e
conta-me como é que as coisas marcham. e escrevo. quer dizer, eu dito e ele
escreve. depois revemos o texto. se não fosse ele teria havido uma grande
perturbação. dirijo a companhia há muitos anos. esta solução de ter um
director-adjunto facilitou muito as coisas – parecia que estava a adivinhar,
engendrei esta solução antes de estar doente, como se tivesse tido um
pressentimento. quando cá venho, há pessoas que me dizem: ‘ah, não se nota nada
que não estás lá, as coisas correm muito bem’.
isso chateia-o ou
deixa-o contente?
deixa-me contente, foi sempre o meu
objectivo. é necessário garantir o futuro.
são seis décadas de
vida, quarenta delas ligadas ao teatro e à cta. que balanço faz?
não sou dado a considerações sobre o
passado, estou sempre a pensar no futuro. mas posso fazer um balanço da geração
a que pertenço, com o luís miguel cintra, o joão mota, o hélder costa. é uma
geração que renovou completamente o teatro português, a primeira a criar os
seus próprios teatros. começámos na mesma altura, entre 69, 70 e 71. o joão
mota fundou a comuna, o cintra a cornucópia, eu este. há uma grande paixão pelo
teatro. o teatro é um vício, como a droga: quando entramos dificilmente saímos.
nasceu em lisboa em
1943. o seu pai trabalhava em teatro…
o meu pai foi empresário de teatro. nunca
dizia que tinha feito um espectáculo. dizia que tinha feito um negócio. a vida
correu-lhe mal, acho que pela sua seriedade._ficou sem teatros nenhuns, poderia
ter dirigido vários. nos anos 20 foi empresário do trindade durante dois anos.
quando nasci, tinha 52 anos e estava na pura miséria. tive uma infância muito
difícil. a minha mãe morreu com 38 anos, quando eu tinha sete, o meu pai morreu
um ano depois.
foi viver com quem?
com uma irmã do meu pai.
como chegou ao
jornalismo?
tinha a intenção de fazer o curso de
histórico-filosóficas. até que me surge um emprego na editorial enciclopédia,
que publicava a grande enciclopédia portuguesa e brasileira. fazia
verbetes relacionados com o brasil. e já escrevia no diário de lisboa
juvenil. não me largava a ideia de ser jornalista. um ano depois,
apareceu-me a oportunidade, através de um amigo, de uma vaga no república,
o jornal de oposição. não perdi tempo a pensar. na enciclopédia ganhava
1.300 escudos. fui para o república ganhar 800. queria ser jornalista.
que idade tinha?
vinte. deixei de pensar na universidade,
que não era bem vista na minha geração. era considerada fascista. uma grande
parte dos jovens da minha idade abandonaram cursos para fazer o teatro. a minha
mulher, a teresa [gafeira, actriz], a quem faltavam duas cadeiras para acabar o
curso de arquitectura, deixou a escola para fazer teatro.
o que fazia no
jornalismo?
os jornais não estavam compartimentados em
secções como hoje. tínhamos de fazer tudo. às vezes chegávamos à redacção e o
chefe, o vítor direito, mandava-nos para o governo civil para saber as prisões.
outras vezes ia para julgamentos, para incêndios. fazia de tudo. e crítica de teatro.
lembra-se da
primeira vez que foi ao teatro?
tinha 12 anos, vi o aqui há fantasmas.
fiquei fascinado com as entradas e saídas de actores, com as cenas dos
fantasmas.
nunca foi ao teatro
com o seu pai?
não.
ele falava-lhe de
teatro?
o meu pai falava muito pouco. teve uma vida
muito dura nos últimos anos. mas chegou a viver muito bem. teve um grande êxito
com uma peça, o leão da estrela, interpretada pelo chaby pinheiro, no
politeama. ganhou rios de dinheiro.
enveredou pelo
teatro pelo seu pai?
não. quer dizer… a história de como comecei
a ser crítico é interessante. o chefe de redacção do república era um
velho anarquista, o artur inês. um dia disse-me: ‘oiça lá, você chama-se benite
mas eu tenho aqui na sua folha o nome macedo brito’. eu disse: ‘o meu pai
chamava-se macedo e brito’. ‘então porque é que usa o nome benite?’. ‘porque
decidi usar o nome da minha mãe’. ‘ah, o seu pai era muito meu amigo. se era
empresário de teatro, você é que deve ser bom para a crítica teatral. vai fazê-la
hoje’. fui fazer uma crítica a uma peça da laura alves. como era um pretenso
intelectual, escrevi a dizer mal.
justificado?
claro, era teatro de muito má qualidade.
ele chamou-me ao gabinete e disse-me: ‘oiça lá, neste jornal não se pode dizer
mal da senhora dona laura alves’. porque havia esta ligação entre a oposição e
o regime. e disse-me para fazer outra a dizer bem. e eu fiz.
custou-lhe?
muito. mas custava mais perder o emprego.
entrou no teatro
pela crítica?
achava maçador estar a escrever sobre uma
coisa que eu gostaria de fazer. então criei um grupo amador.
já tinha experiência
de teatro?
quanto era estudante participei nalguns
espectáculos como actor. era muito mau.
pois, porque nunca o
vimos em palco…
nunca me interessou. é muito difícil estar
todos os dias a dizer o mesmo, durante uma porrada de tempo. implica perder
liberdade, tem que se estar todas as noites a fazer aquilo. o encenador é o
contrário. acaba um espectáculo e estamos a preparar o outro. somos donos dos
nossos horários.
fundou então o grupo
de teatro campolide atlético clube. com que idade?
vinte e cinco. o campolide atlético clube
tinha criado uma secção cultural e fizeram um grupo de teatro. na altura eu era
muito conhecido e discutido por causa da crítica de teatro e lembraram-se de me
convidar. não sei se pensavam que por terem um crítico no grupo iam ter boas
críticas.
e tiveram?
no diário de lisboa estava o urbano
tavares rodrigues, que fez uma crítica ao meu primeiro espectáculo dizendo
muito bem. surpreendeu-me. não sabia que era tão fácil dar nas vistas.
e o salto da crítica
para a encenação?
se como um prato num restaurante que não
sei fazer, assim que chego a casa tento executá-lo. às vezes só à décima
consigo fazer um prato igual ao que comi. com o teatro é a mesma coisa. um
crítico, ao ver os espectáculos, aprende muito. eu observava os actores no
palco, as posições, as marcações, os movimentos. e o fernando gusmão ensinou-me
muitas coisas. considero-o o meu principal mestre no teatro.
teve logo a casa
cheia?
esgotava com dois meses de antecedência.
era um teatro de bairro, aquilo era uma surpresa para a população. na altura
tinha a ideia utópica de me dirigir aos habitantes do casal ventoso e do bairro
da serafina. íamos lá fazer propaganda de espectáculo e trazê-los ao teatro.
uma vez apareceu-me um casal com um cão, que me perguntou se o cão podia
entrar. disse que não. à noite foram ver a peça. no final saíram com o cão.
tinham-no escondido. e não ladrou.
a ideia não era
utópica.
não conseguimos o que queríamos, trazer os
bairros em peso ao teatro, mas levámos muita gente. fizemos espectáculos na
igreja de santo condestável, em fábricas, em sociedades de recreio. encontrámos
outro circuito.
quando se mudam para
almada?
depois do 25 de abril. fizemos algumas peças
em campolide e, no princípio de 77, a direcção do inatel convidou-me para fazer
uma montagem no trindade. fiz uma peça do virgílio martinho, 1383, e
outra do dias gomes, o santo inquérito. foram um êxito, todas as noites
600 pessoas. sugeriram-me dirigir o trindade. mas assustei-me porque no prec as
direcções do inatel duravam três meses. entretanto o presidente da academia
almadense disse que me dava o teatro. aceitei. estive lá 10 anos, depois
criámos o teatro municipal no antigo mercado abastecedor, onde estivemos 18
anos até vir para aqui.
não teve medo de ir
para almada?
disseram-me que era louco, que era
impossível, que não me ia aguentar aqui. mas já havia subsídios, logo outras
possibilidades de desenvolvimento da companhia. era muito ambicioso, queria
fazer um teatro em que o próprio teatro fomentasse a formação do público. em
almada só havia teatro de revista. tive peças com cinco espectadores.
perguntavam: ‘é uma revista?’. dizíamos que não, iam-se embora.
como conquistou
essas pessoas?
com uma actividade permanente de propaganda
nas fábricas. a primeira peça começou com pouca gente e acabou esgotada.
as pessoas vinham à
procura de revista e encontravam teatro-arte. o que lhe diziam?
perguntavam-me o que as coisas queriam
dizer. uma grande vantagem de estar em almada era a possibilidade de conhecer o
povo. em lisboa não se encontra as pessoas. aqui vêm falar connosco. há uma
dessacralização do actor. muitos espectadores, antigos operários sem prática de
teatro, hoje vêm aqui, à cornucópia, à comuna. foi público conquistado para o
teatro.
como é que isso se
consegue?
com idas ao teatro. a melhor forma de formar públicos é fazer muito
teatro. as pessoas começam por não ir, mas depois o vizinho diz que a peça é
interessante e, pouco a pouco, a coisa cresce. e com peças para a infância.
temos espectadores que começaram a ver teatro aos seis anos connosco.