O último dos boémios de Lisboa

Deitado na cama do hospital, Carlinhos estava longe de imaginar a surpresa que lhe preparavam. Vestido a rigor, com a jaleca e o toque na cabeça, um chef de cozinha entra no seu quarto na CUF. Nas mãos carrega um prato com uma reluzente campânula em prata que oculta um linguini de lavagante. Os seus olhos brilharam ao ver tamanho…

carlos feio ou tio carlinhos dedicou a sua vida aos prazeres da mesa. e disso fez uma verdadeira arte. dele não constam biografias nem historietas perdidas pela internet. no entanto, poucos são os que, frequentando assiduamente a noite e os restaurantes clássicos de lisboa, não façam uma vénia perante este nome. o último dos boémios morreu a 26 de julho. tinha 86 anos.

no dia do derradeiro internamento preparava-se para mais uma almoçarada entre amigos. vestido, na cadeira de rodas, faltava-lhe um pormenor: pediu à criada que lhe fosse buscar um lenço de lapela. andava quase sempre vestido como se fosse para uma gala. nesta fracção de segundos sentiu-se mal e foi levado de urgência para o hospital. o almoço ficou adiado. para sempre.

carlos feio era um homem grande, uma imagem imponente suavizada pelos olhos azuis cristalinos e meigos. entregou-se à boémia ainda antes dos 16 anos e nunca se fartou. «gostava de ter sempre companhia, de estar com pessoas, de conversar, contar as suas histórias, brincar. cativava qualquer desconhecido, de qualquer geração. foi um homem que viveu fora do seu tempo», elogia o sobrinho bernardo empis, de 49 anos.

tinha prazer em conhecer pessoas e gostava de oferecer. «ainda hoje, se chego a algum lado e digo que sou neto do carlinhos feio, há sempre alguém que me dá um abraço e me oferece um copo», revela o neto joão bravo, de 27 anos. sempre gostou de estar rodeado pelos mais jovens. afinal, eram os que o conseguiam acompanhar na sua energia insaciável. «foi ele que me lançou na noite – stone’s, bananas, ad lib, van gogo, e mais tarde o t, kapital e kremlin. era um amigo, encontrava-o na noite, ficávamos juntos e acabava com ele a levar-me ao liceu maria amália. dizia sempre: faz o que eu digo e não o que eu faço. tinha a humildade de assumir que tinha uma vida de excessos», conta o sobrinho miguel pereira coutinho, de 43 anos. 

gostava de dançar – e, enquanto podia, o peso não o inibia –, mas sobretudo gostava de conversar enquanto bebia o seu whisky. terá chegado a ter 17 garrafas abertas em diferentes locais da noite. «naquela altura, na kapital e no kremlin, havia faunas diferentes e ele conseguia cativar toda a gente com o seu sorriso. fazia um brinde com todos os que passavam por si. muitas vezes, mesmo quem não sabia quem ele era, perguntava por ele», recorda paulo dâmaso, braço-direito dos irmãos rocha no grupo k.

mas era o gambrinus a sua segunda casa, onde foi cliente mais de 50 anos. enquanto pôde gostava de se sentar ao balcão. fumava cigarrilhas e pedia um ‘passarinho’, nome que dava ao whisky, sempre com água. alturas houve em que todos os dias ali ia. ficava até a porta fechar e muitas vezes não descansava enquanto não convencia os empregados a seguirem consigo para a noite. metia conversa com outras mesas. mesmo quando eram estrangeiros e apesar de não falar outras línguas. fazia-se entender. 

perdia-se por bom marisco, pastéis de bacalhau com arroz de grelos, eisbein, sopa de grão e espinafres. só não gostava de atum e anchovas. depois de uma refeição comia sempre pão com manteiga. a acompanhar preferia vinho verde – quinta da aveleda, propriedade ligada à mulher. cada vez que acabava uma garrafa, despedia-se dela com um beijo. quando achava a conta excessiva metia-a na boca e mastigava-a. brincadeiras à parte, pagava sempre.

uma vida preenchida

carlos antónio ribeiro da silva cordeiro feio nasceu a 14 de maio de 1927. o mais novo de dois irmãos, filho de um director da caixa geral de depósitos e de uma alentejana que lhe valeu para sempre a paixão pela planície.

cresceu num palacete na rua vítor cordon e foi sempre o menino dos olhos do avô carlos manuel ribeiro da silva, detentor de uma enorme fortuna, que o mimou sem limites. «o avô adorava-o e dava-lhe tudo o que ele queria», diz o amigo e primo, d. vicente da câmara. «o primeiro carro que teve foi um ford taunus descapotável, amarelo limão que o avô lhe deu», revela joão brito e cunha, conde de portugal de faria, amigo há 60 anos. depois veio uma station opel que apelidou de ‘pombinha’ e que o acompanhou pela vida.

foi solteiro até tarde. seguiu o conselho que deu depois aos netos e só casou depois dos 30 anos – aos 33 – com teresa guedes patrício, jovem que já conhecia há muito, dos verões em são martinho do porto. foi em são martinho, no clube delírio, casa onde pais e filhos se juntavam em serões de jogos e baile, que a corte terá começado. o casamento foi católico. teve duas filhas, catarina e maria luísa, e cinco netos: joão, duarte, teresa, luísa e madalena. «preocupava-se imenso com os netos, queria saber tudo sobre as nossas vidas. só nunca perguntava pelas notas», esclarece o neto joão.

foi homem de uma mulher só. é unânime a ideia de que a sua boémia nunca passou pelas mulheres. quando enviuvou, em 1989, não se voltou a juntar. entregou toda a fortuna da família às duas filhas e disse, na altura, ao ‘irmão’ luís augusto simões, que conhecia desde os 16 anos, que «tinha consciência que não acompanhou as filhas como deveria, que não tinha estado presente, mas que as amava muito. gostava delas, mas à maneira dele». 

como o neto joão diz, «não se pode prender um pássaro numa gaiola». era um homem de família, mas tinha sede de vida. «uma sede inaudita», expressão que imortalizou na noite alfacinha. claro que esta ‘sede’ nem sempre conviveu de forma pacífica com a família. «os amigos das filhas adoravam-nos, mas podia ser estranho para uma filha sair à noite e encontrar o pai», questiona o sobrinho miguel.

carlos feio não foi grande amigo dos estudos. não terá sequer terminado o liceu, que fez na antiga école française, ao príncipe real. a vida foi carteira de escola. foi tendo os seus negócios: com o irmão, daniel, abriu uma loja de artigos de desporto na rua do carmo e teve uma empresa de materiais de construção em vila praia de âncora, caminha, onde a família teve uma casa de férias. mas os negócios não eram o seu forte apesar de, segundo o amigo luís augusto, ter sido «muito trabalhador» em determinada fase da vida. sonhou ser agrónomo e explorar uma propriedade do avô, a herdade da parreira que, no entanto, foi vendida antes que pudesse concretizar este desejo.

com este avô aprendeu a interessar-se por ópera e fado. gostava de acompanhar a actualidade e discutir política. no final da década de 40, o avô ofereceu-lhe dinheiro para ir viajar pela europa. convidou o amigo luís augusto e partiram. mal chegaram a madrid tiveram o primeiro problema. «ao fim do primeiro dia, estávamos alojados no rex, e ele diz-me que tem de ir a lisboa». já tinha gasto o dinheiro todo. pediu mais dinheiro ao avô e regressou. 

mas as peripécias não ficaram por aqui. em viena de áustria, na que viria a ser a última semana da ocupação soviética, resolve fotografar o quartel dos russos. resultado? foi preso por pensarem ser um espião. «tive de intervir junto do embaixador para o libertarem». dias depois acabam, levados por um grupo de polacos, num campo de nudistas. «na primeira noite aceitaram que estivéssemos vestidos à mesa, o que foi ridículo porque estavam todos nus e nós vestidos a rigor para jantar». as histórias, recorda luís augusto, são intermináveis. muitas nunca poderão ser partilhadas. a viagem, que deveria durar um mês, durou quatro.

carlinhos feio assegurava que, à mesa, não se envelhece. o prazer das refeições era tal que, na sua sala de jantar, tinha uma mesa com capacidade para 20 pessoas. «aqui há uns anos comprei-lhe essa mesa», brinca gigi, que conheceu este bon vivant há mais de 35 anos através de amigos comuns e com quem, todos os anos, organizava uma grande almoçarada no algarve. «ele era um bom garfo, um senhor à moda antiga, das pessoas com mais classe e educação que já conheci, foi sempre uma pessoa muito doce».

as noites acabavam muitas vezes em pequenos-almoços no hotel tivoli ou ceias em casa de carlos, para as quais convidava frequentemente o taxista que o levasse a casa. numa dessas ceias, o motorista desabafava sobre as dificuldades com que vivia. perante isto, decidiu oferecer-lhe um cabrito que estava já temperado no frigorífico para um almoço de família. despediram-se e tio carlinhos foi dormir. no dia seguinte, a mulher teresa e as duas criadas viraram a casa em busca do cabrito, enquanto carlos dormia. nada. uns dias mais tarde, numa viagem de táxi, a mulher encontra um taxista que lhe diz: «ainda no outro dia deixei aqui um senhor muito simpático que até me ofereceu um cabrito».

lutar contra a doença

25 de julho, dia da morte de carlos feio. um homem na casa dos 40 anos chorava desalmadamente numa mesa do gambrinus. «vim beber um copo e comer qualquer coisa para homenagear um amigo», comentou com brito, empregado da casa há 47 anos que bem conhecia o sr. carlos feio. o homem não se identificou, mas conhecia bem esta personagem que lisboa acabara de perder. sabia que a maior das homenagens que lhe poderia prestar era ali: à mesa do gambrinus. apenas dois meses antes de morrer deixou de ir ao gambrinus. chegava a chamar um táxi, no qual a criada o sentava, seguia para o restaurante, e depois chamava outro táxi para regressar a casa.

contrariou sempre as partidas da vida. ignorou a diabetes, que lhe quis levar os prazeres, o que o levou a ser internado vezes sem conta. o sobrinho miguel pereira coutinho recorda que a primeira vez que o tio entrou em coma diabético, disse à mulher: «tens de me trazer comida que só oiço toda a gente à minha volta dizer ‘coma, diabético!’».

para ele tudo era uma brincadeira. imitava na perfeição o miar dos gatos e era capaz de o fazer no meio do tavares até estar toda a gente de pé à procura de um gato. uma noite, com um grupo de amigos, encontrou uma mala de cartão no lixo. «pegou naquilo e passámos a noite a correr restaurantes e bares em que ele, à entrada, pedia para lhe guardarem a mala que tinha muito valor. aquilo estava nojento, mas toda a gente aceitava guardar porque era dele!», recorda luís augusto.

perdeu dedos das mãos e um pé, fez um bypass, ficou preso a uma cadeira de rodas. nunca cedeu à doença. chegou a sair do hospital directamente para um repasto. «uma vez, estava internado, ligou-me e disse-me para passar no gambrinus que estava lá um pacote para ele. eram croquetes, grelos, amêndoas salteadas e torradas aparadas. era difícil dizer-lhe que não», conta o mais velho dos netos, joão bravo.

na recta final da vida, quando o alertavam para alguns excessos – sobretudo as duas filhas, sempre preocupadas com o pai –, respondia sempre que tinha sido feliz toda a vida e que queria morrer feliz. não queria viver infeliz só para ter direito a mais tempo. brito, o homem do gambrinus, sempre achou «que ele tinha medo de dormir». é compreensível. afinal, para o tio carlinhos, estar acordado foi sempre muito bom.

raquel.carrilho@sol.pt