telmo moutinho foi um dos melhores alunos do curso. brilhou logo, os professores rapidamente lhe traçaram um futuro luminoso na arte de fazer doces. andreia luís vê nele igual brilho, mas também ela dá provas do seu talento, sem se deixar ofuscar. ele trabalha na cozinha de alain ducasse, o chefe que reúne mais estrelas michelin em todo o mundo – tem 19.
ela, numa das mais famosas pastelarias mundiais, a francesa ladurée, celebrizada pelos seus coloridos macarons e pelas belíssimas caixas que os abrigam. os dois estão a cumprir o sonho de qualquer pasteleiro. e ainda estão longe de completar os trinta anos.
é num dos mais famosos restaurantes de alain ducasse (o chefe monegasco tem mais de 20), o le jules verne (cujo menu custa 210 euros por pessoa), no segundo andar da torre eiffel, em paris, que telmo passa os seus dias. é responsável pelos doces. acima de si, há apenas um chefe executivo, que não está no restaurante no dia-a-dia. é telmo que supervisiona as sobremesas servidas. está no topo do mundo. ali trabalha-se a mil à hora, pouco tempo há para descansar, são três dias intensos na cozinha de manhã à noite.
«acordo às 5h da manhã, deito-me à 1h», conta o pasteleiro, com um sorriso de quem não lamenta as poucas horas de sono. e salienta: «depois descanso três dias». antes, trabalhou com joël robuchon, outro dos mais destacados chefes mundiais, ‘rival’ de alain ducasse, no título de melhor chefe francês (ducasse, que nasceu no mónaco, já adquiriu nacionalidade francesa).
«no robuchon trabalhei como ajudante de pastelaria. passados quatro meses promoveram-me a subchefe. passei lá um ano. era super duro. trabalhava das oito às duas da manhã, com uma pausa de dez minutos, para comer de pé. uma média de 18h por dia». trabalhava três dias, folgava outros três. estava exausto. «nos restaurantes estrelados é sempre, sempre a abrir, para que saia tudo perfeito. no final do almoço, o que sobra vai para o lixo e tem de se fazer tudo de novo para o jantar. é o método utilizado em restaurantes de renome». durante esse ano, viu robuchon apenas duas vezes. «o trabalho dele é dar a volta aos restaurantes, e tem muitos. ele aparece quando lá vai a televisão». telmo queria sair ir em busca de novos desafios. o restaurante de alain ducasse caiu-lhe no colo.
foi graças à namorada que telmo conseguiu o emprego. andreia não gosta da pressão que um restaurante de topo implica, não tinha grande interesse em abandonar a ladurée, onde pode trabalhar oito horas por dia e ficar o resto do tempo a fazer experiências. mas antes de conseguir o trabalho nesta pastelaria, tinha enviado currículos para outros locais e chefes, entre eles ducasse. foi chamada para uma entrevista e não quis recusar.
como, na altura, o seu francês era muito incipiente, pediu a telmo que a acompanhasse e servisse de tradutor. durante a reunião com andreia, o entrevistador perguntou a telmo o que fazia. quando o jovem pasteleiro disse trabalhar no ateliê robuchon, o entrevistador perguntou-lhe se queria um novo emprego com ducasse. é um meio competitivo, e as cozinhas ‘roubam’ chefes umas às outras. «é um pouco como os clubes de futebol, que querem este ou aquele jogador», explica telmo. ofereceram-lhe uma promoção. era um convite irrecusável. três horas mais tarde estava a conhecer os cantos ao le jules verne.
andreia também recebeu uma proposta. declinou. gosta do que faz na ladurée. «o telmo neste tipo de restaurantes aperfeiçoa a técnica de sobremesas. eu gosto mais de trabalhar chocolate, açúcar, bolos de casamento…».
telmo aceitou. os horários também são duros. «entro às 6h30 da manhã e saio à meia-noite. só que o ducasse é mais humano. posso almoçar e jantar, no robouchon não podia. e mais: aqui fazemos as refeições na sala, com uma grande paisagem». telmo sente que, na cozinha de ducasse, é tratado como uma pessoa. «ducasse fala com toda a gente, até com as senhoras da limpeza».
de mirandela para paris
mas como chegaram, afinal, estes dois pasteleiros de 25 anos a tão importantes cozinhas num tão curto espaço de tempo?
telmo cresceu entre tachos e panelas. natural de mirandela, a mãe era cozinheira. desde miúdo que, vendo-se sozinho à hora das refeições, se desenvencilhava na cozinha. «com os horários complicados que ela tinha, tive de me habituar desde cedo a fazer alguma coisa se queria comer». os pratos simples transformaram-se noutros mais complexos e aquilo que começou como uma necessidade transformou-se numa paixão. juntando o útil ao agradável, inscreveu-se na escola de hotelaria de mirandela, onde esteve três anos a estudar cozinha e pastelaria. percebeu que gostava de doces. mal soube que a escola de hotelaria do oeste tinha criado um curso de pastelaria avançada, inscreveu-se.
foi em óbidos que conheceu andreia, cujo adn quase tem gravado o creme de pasteleiro, o açúcar, os ovos. a pastelaria é um negócio de família. «temos uma fábrica em cascais há mais de 50 anos. é uma coisa que esteve sempre comigo. cresci no meio da farinha», conta andreia, que sonhava com uma carreira na área da engenharia marítima. quando não conseguiu entrar na universidade, inscreveu-se num curso de pastelaria na pontinha. «depois consegui entrar para a faculdade. mas já não estava interessada. queria continuar em pastelaria. vi este curso em óbidos e foi assim que nos encontrámos», diz, olhando para telmo com um sorriso feliz.
findo o ano de curso, trabalharam outro ano em cozinhas portuguesas de renome, com chefes como luís baena e leonel pereira. já tinham um objectivo: ganhar calo e juntar dinheiro para ir para fora, construir uma carreira, ganhar experiência, aprender com os melhores. «com o primeiro ordenado que tive na conta, 500 euros, fui à agência de viagens comprar dois bilhetes de avião para roma e reservar hotel», lembra andreia. nesse fim-de-semana passearam pela cidade e distribuíram currículos. mais tarde voltaram com a certeza de um emprego. mas a ideia foi sempre seguir para frança. telmo foi o primeiro a dar o salto. enviou currículos e recebeu um telefonema. «ligaram-me do ateliê do robouchon para ir no dia seguinte a uma entrevista. tive de largar tudo, comprar o bilhete de avião. era o 6.º melhor restaurante do mundo. fiquei». passados três meses, andreia juntou-se-lhe. não aguentou as saudades.
andreia espera ser promovida até ao final do ano, telmo planeia aceitar um convite para a ladurée, onde será chefe de andreia. felizes, riem-se da hierarquia profissional. andreia sabe que telmo pode ditar as regras na cozinha, mas que em casa quem manda é ela. excepto na cozinha, onde lhe passa sempre a colher. «sou eu que cozinho em casa. e como estamos no estrangeiro, tento fazer pratos tradicionais: um bacalhau à brás, essas coisinhas assim», diz telmo. «mas mudámos de casa, agora temos um forno, e eu prometi que vou começar a cozinhar. só que com um cozinheiro como ele em casa sinto-me inibida», atira andreia. o riso indica, porém, que é por uma certa preguiça que cede o leme da cozinha caseira.
daqui a três anos esperam regressar a casa. e abrir a melhor pastelaria portuguesa. portugal começa a entrar no roteiro da alta cozinha internacional. e os dois esperam trazer mais estrelas michelin ao país. brilho não lhes falta.
rita.s.freire@sol.pt