O que o seduz na actividade política?
A acção. Claro que é possível agir sem ser na política, como agora, nesta fundação. Mas naquela altura achei que era através da política. Sempre tive interesse pela vida política, que exige, ou deveria exigir, tudo de uma pessoa: conhecimento, treino, experiência, convicção, saber errar, ter lealdade, ser determinado, ter convicção…
O que o desiludiu ao ponto de abdicar desse fascínio e não querer regressar à política?
As pessoas ficam prisioneiras da sua própria vida e do seu currículo. Não volto à política porque nunca poderei ser o cidadão António que quer ir fazer política. O que quer que faça é lido, pensado, interpretado e meditado como alguém que tem este currículo. O meu capítulo político acabou. Já não me apetece mais, já fiz muito na política. Fui eleito, demitido, ganhei, perdi. Já não tenho mais, sobretudo agora em que, mais do que nunca, vale tudo.
A passagem pela política desgastou-o assim tanto?
Não… Fez-me um bocado mais cínico. O que é bom. Quem não tem um bocadinho de cinismo corre o risco de ficar um inocente-parvo.
Continua a recusar a ideia de ser candidato à Presidência da República?
Alguém me colou isso no corpo, como um adesivo que não consigo tirar. Já disse que não, já desmenti, fui definitivo. Vão ter de esperar pela minha morte para saber.
Nos últimos anos, voltou a dedicar-se às Ciências Sociais através da presidência da Fundação Francisco Manuel dos Santos. As fundações têm estado debaixo de fogo. Como lida com isso?
O Governo e o Parlamento fizeram as leis sobre as fundações e alguns dos dispositivos da lei prejudicam a acção desta fundação. E prejudicam injustamente porque não somos públicos, não usamos dinheiro do Estado. Temos os livros abertos e podem fiscalizar tudo, mas em muitos casos o poder político não agiu, deixou que certas fundações fizessem coisas e não deviam ter deixado, e agora paga toda a gente. Vou lutar contra esta lei das fundações, mas vou respeitá-la e cumpri-la. Mas esta lei retira liberdade. Qualquer pessoa faz as associações, empresas ou sindicatos que quiser, mas fundações não. Isto é um regresso da tradição despótica e territorial portuguesa.
Aos 13 anos, o tal rapaz de Vila Real que queria conhecer o mundo fez uma lista de sítios que queria visitar. Ainda guarda esse papel?
Sim. E o balanço melhorou muito nos últimos cinco ou seis anos. Este ano estive em Petra e Jerusalém, que faziam parte da lista, ainda que não da lista original, mas eram sítios que fui acrescentando. Os 12 ou 13 destinos iniciais foram aumentados para uns 25 ou 26. Nos últimos anos estive em São Petersburgo, em Istambul, atravessei o Bósforo, subi e desci o Nilo… Ainda me falta a China… E, quando fiz a lista incluí a Índia, mas recentemente revi e acrescentei ‘de comboio’.
Ilumina-se ao falar de viagens…
Sim. Gosto de conhecer tudo o que o homem fez e faz. Locais como a Amazónia, o Grand Canyon, o deserto de Atacama, não me fascinam só por si, mas por lá terem estado homens. Gosto de perceber o que leva o ser humano a ir organizar uma parte da sua vida em locais como estes, sítios hostis, e perceber até onde foram os homens para sobreviver.
O deserto do Atacama também se revelou um destino hostil para si…
Ia de La Paz, na Bolívia, para Chuquicamata, uma das grandes minas de cobre do Chile, a céu aberto. Um local lindíssimo para fotografar. Ia num comboio muito antigo e desconfortável, com três ou quatro carruagens com bolivianos e chilenos, outras com mercadoria e um vagão com turistas. Éramos uns 15, um belga, um suíço, alguns americanos… Estava um calor terrível e, de repente, o comboio pára. Ouve-se barulho, vimos pessoas com armas e percebemos que era um movimento local que tinha parado o comboio para desaparafusar a nossa carruagem e ficar connosco como reféns.
E assim fizeram.
Sim. Entretanto mandaram um telegrama para o Governo a dizer que queriam reabrir uma escola e um centro de saúde numa aldeia local. Houve umas horas de inquietação para perceber o que ia acontecer, mas rapidamente fiz simpatias quando disse que era português, refugiado e comunista. Aquilo durou sensivelmente um dia e meio, passámos uma noite gelada na carruagem e depois vieram anunciar que o Governo aceitava as condições. Despedimo-nos com grandes abraços e um álcool local.
Fez teatro, sonhava ser cantor… Ganhou-se um sociólogo, mas perdeu-se um artista?
Gostei do período em que fiz teatro, mas sobretudo gostava muito de ter sido cantor. Tenho uma frustração absoluta de não ser cantor, é a grande frustração da minha vida. Hoje em dia contento-me em ouvir muita música, ver pintura e fazer fotografia.
A fotografia tornou-se uma das grandes paixões da sua vida?
Comecei a fotografar mesmo muito novo, porque tive a sorte de receber uma máquina de um programa de variedades que passou por Vila Real. Foi um interesse e um fascínio que cresceram lentamente. Sobretudo a partir dos 20 anos, já na Suíça, fiz muitas viagens e, durante as viagens, queremos sempre fotografar. Numa primeira fase achava que a fotografia nem era uma arte, servia só para fixar memórias, mas depois percebi que é uma arte significativa e difícil, até como recolha e compreensão das pessoas e da história. Para mim a fotografia condensa o artista, o viajante e o académico.
Em Outubro celebra 70 anos. É uma data que está a encarar com tranquilidade?
Corro o risco de parecer presunçoso se disser que estou tranquilo. Mas também estou triste. Toda a minha vida, cada vez que vivi períodos mais difíceis, crises, revoluções, em todos os momentos pensei sempre que melhoraria em poucos anos. Actualmente a profundidade da crise em Portugal é tão enorme que é a primeira vez que tenho a tristeza de pensar que as próximas gerações vão ter mil vezes mais dificuldades do que as anteriores. No outro dia uma criança estava a falar comigo e com a minha mulher e disse-nos: ‘Já repararam no estado em que nos vão deixar a terra?’. É verdade, mas chocou-me tanto ouvir dizer isto. Claro que quem me ler vai dizer que tenho 70 anos e que esta emoção crepuscular é de alguém que sabe que vai morrer, mais dia, menos dia. Mas a verdade é que creio que já não vou assistir à recuperação do meu país. De resto, vivo razoavelmente em paz com a morte, a dos outros e a minha.
raquel.carrilho@sol.pt