‘Depois de uma fase de dúvidas, optei pela liberdade’

Licenciou-se em Sociologia na Suíça, foi deputado, secretário de Estado e ministro, mas encerrou o capítulo da política há mais de 20 anos. Apaixonado por viagens e fotografia, apesar de já ter sido feito refém no deserto do Atacama continua a querer partir. Prestes a celebrar 70 anos, António Barreto não tem medo de morrer,…

Cresceu entre Vila Real, Régua e Porto. As recordações de infância são do ambiente mágico do Douro?

Em geral os adultos têm uma recordação mágica da infância, mas o que recordo era que, quando vivia lá, o que queria acima de tudo era ir-me embora. Os jornais chegavam com dias de atraso, não havia cinema, concertos, tudo era longe – só para ir ao Porto eram tantas horas na estrada que tínhamos de levar merendas. Antes do 25 de Abril vim a Lisboa duas vezes na vida! Era tudo longínquo e o que eu mais queria era ir-me embora. Queria conhecer o mundo.

Como é que um miúdo de Vila Real tinha noção de que havia esse mundo todo?

Era ávido com os jornais, com a rádio… Não havia televisão e eu passava horas e horas a ouvir rádio. Começaram a aparecer os primeiros transístores e eu ouvia rádio debaixo dos lençóis para os meus pais não ouvirem. E lia muito. Os meus pais e avós eram ávidos leitores e tinham bibliotecas enormes.

Os seus pais não lhe limitavam as leituras? Não havia uma prateleira proibida?

Havia. Eles diziam que aqueles livros não podíamos ler, mas ao mesmo tempo diziam-nos onde estavam. Claro que, à primeira oportunidade, os íamos buscar. Ali estava o Stendhal, o Victor Hugo, O Crime do Padre Amaro do Eça… Os meus pais eram conservadores, mas liberais no comportamento. Talvez o facto de terem sete filhos, todos rapazes, ajudasse a que assim fossem.

Como se relacionava com os seus irmãos?

Entre o mais velho e o mais novo havia 16 anos de diferença. Arrumávamo-nos por grupos de idade, mas fomos sempre bastante próximos uns dos outros. No Natal de 1974, tinha regressado a Portugal depois de 12 anos na Suíça. O meu irmão José estava na Hungria a estudar e veio cá; e o Paulo estava a trabalhar na Holanda, mas também veio. Foi um encontro irrepetível. De repente pai, mãe e os sete filhos, separados há 12 anos, encontraram-se todos. Estávamos todos vivos e em liberdade. Lembro-me que a minha mãe chorou muito.

Desde criança que tinha consciência do regime em que Portugal vivia?

Sim. Havia pessoas da família mais acomodadas ou indiferentes e outros que eram contra. Eu e outro irmão fomos refractários à guerra colonial, outro desertou já na Guiné, dois fizeram a tropa… Houve todas as hipóteses. Mas ninguém tinha dúvidas de que se vivia num regime de ditadura.

Os seus pais permitiam que se discutisse política em casa?

Não incentivavam, mas era muito fácil, ao almoço ou ao jantar, surgir uma discussão política. Nem sempre corria bem, mas os meus pais não censuravam.

Esse lado conservador dos seus pais ditou que se aproximasse à Igreja?

Os meus pais eram muito empenhados e militantes da Acção Católica e eu estive na Juventude Escolar Católica. Fui militante até aos 15 anos, altura em que tive uma crise completa: de fé, filosófica, política, de maneira de ser e viver. Em seis meses mudou tudo.

O seu mundo mudou?

Sim. Estas coisas não têm hora marcada, mas aproximo essa mudança a dois ou três acontecimentos políticos, nomeadamente à campanha de Humberto Delgado. Tinha 15 anos quando ele foi a Vila Real e fiquei entusiasmadíssimo por ouvir ‘Viva a Liberdade! Viva a República!’. Naquela altura eram frases subversivas. Claro que não foi por causa dele, mas nesse período também estava a passar do 5.º para o 6.º ano [actual 9.º para o 10.º], era necessário fazer escolhas de carreira, era um período importante de crescimento, um dos momentos importantes nas relações amorosas e no conhecimento das raparigas e do sexo. Eu tinha uma vontade empenhada e militante e era da Acção Católica porque queria fazer coisas, mas quando tive essa crise, também foi de fé. Lembro-me que tive três conversas com o meu director espiritual, o padre Borges, e as perguntas que fazia eram coisas como: ‘Para que serve a fé? Se não existisse Deus o homem existia?’. Foram alguns meses com dúvidas e optei pela liberdade. Optei por contrariar, por dizer que não.

Foi sempre um inconformado?

Sim. A independência é a obsessão da minha vida. Quero agir sempre de acordo com o meu coração, a minha cabeça, as minhas ideias. No meu período de revolta, fui-me embora. Pus uma tenda às costas e fui com um amigo para a praia, tinha 15 anos. Estive semanas fora de casa, apenas ligava de vez em quando, mas os meus pais arriscavam – depois disto deixaram-me ir para Londres com um irmão. Nesse período foi preciso inscrever-me no liceu e eu não estava lá. O meu pai era engenheiro e gostava de ter um filho engenheiro. Como eu tinha ainda melhores notas a Ciências do que a Letras, inscreveu-me em Ciências, apesar de não ser aquilo de que eu gostava mais. Quando chego a casa pergunto onde me vou inscrever e o meu pai diz-me que já estou inscrito em Ciências.

O que fez?

Disse logo que não. Mas foi difícil. Tive de esperar três meses porque na altura era preciso fazer um requerimento ao ministro. Gostava de Ciências Sociais, atraía-me a política, e a área mais próxima era Direito. Quando finalmente recomecei as aulas, já em Letras, tive um professor de Filosofia, o Dr. Proença, que pela primeira vez me explicou o que era Sociologia. Foi tiro e queda. Era o que eu queria, queria aprender a olhar para o mundo. Só que era proibido leccionar Sociologia em Portugal, o Dr. Salazar assim tinha decidido. Por isso fui para Direito.

Falou de uma ida a Londres com o seu irmão. Para um miúdo de 16 anos era uma cidade gigante?

Foi a primeira vez que me senti totalmente livre e sozinho. Fomos para ficar três ou quatro semanas e ficámos três meses. Na minha formação de adolescente foi o ponto de viragem e que mais me perturbou. Foi ali que descobri o que se fazia de novo na música e que descobri as raparigas.

Não teve descobertas mais arriscadas, como as drogas?

Isso só quando fui para a Suíça, por volta dos 22 anos. Mas foi um contacto muito reduzido. Fumei dois ou três charros e snifei algo que se assemelhava a uma linha de coca. Mas nunca tive atracção pela droga, nunca tive tentação de continuar, não tive de me travar.

Como foram os anos a estudar Direito em Coimbra?

Estive lá três anos, mas correu tudo mal. Era aluno voluntário e trabalhava nos escritórios de uma fábrica de bolachas, a Triunfo. Fazia listas de trabalhadores, os descontos para a segurança social e não tinha tempo para estudar.

É nessa altura que começa a fazer teatro?

Sim. E gostava muito mais de fazer teatro à noite no grupo académico do que de estudar Direito. Fiz as cadeiras do primeiro ano e algumas do segundo, mas nem sequer acabei o ano. Mas fiz muito teatro nessa altura. E fiz um bocado de política.

E aproximou-se do Partido Comunista?

Sim. Na altura, tudo em mim me aproximava para um grupo político de esquerda, revolucionário, que quisesse dar cabo do regime, e com essas características só havia o PC. Havia uns grupinhos como os Socialistas Republicanos, mas realmente organizados e com acção era o PC. Como estava muito envolvido nas associações estudantis e no teatro, acabei por ser convidado para me juntar.

Comunista, ligado ao teatro e ao meio estudantil. Tinha tudo para ser preso…

Estava próximo. Já tinha vários amigos presos, desde o meu companheiro de quarto na Pensão Costa a amigos do teatro. Entretanto soube que ia ser chamado para a tropa e fui para a Suíça.

Porquê a Suíça?

A ideia era ir para a Alemanha, onde tinha um amigo. Mas dias antes de partir encontrei uma pessoa que estava a estudar em Genebra e que me disse que, se quisesse, podia passar lá um mês ou dois. Saí do comboio em Genebra para lá ficar uns dias. Fiquei 12 anos.

O que o fez ficar?

Gostei muito de Genebra. É uma cidade no centro da Europa e, para mim, na altura, o centro da Europa era o centro do mundo. Em quatro horas de carro estava em Paris ou Milão. E Genebra tinha tudo: bibliotecas, cinemas e um curso de Sociologia. Nem sempre as minhas relações com os suíços eram a coisa mais agradável do mundo, porque eles eram fechados. Mas gostei muito do período que lá passei. Aprendi a viver e a ser livre.

Não sentia a revolta de ter de estar longe do seu país?

Vivi 12 anos à espera de poder voltar. Quando se dá o 16 de Março fiquei de tal maneira revoltado que dois dias depois meti os papéis para me naturalizar suíço. Concluí que aquele falhanço era tão mau que íamos perder a oportunidade de ter democracia durante mais 10 ou 20 anos.

Mas nunca efectivou esse impulso?

Não. Mas a verdade é que não estava a viver bem nessa altura. Vivia entre duas cadeias: na Suíça tinha liberdade, mas não podia fazer política; e não podia vir a Portugal.

Um mês depois dá-se o 25 de Abril…

Só soube um dia mais tarde. Justamente devido ao 16 de Março, tinha comprado um bilhete de comboio com 10 ou 15 mil quilómetros [sistema semelhante ao actual Interrail] e fui para Itália, Áustria, Hungria – onde vivia um irmão e Alemanha. O 25 de Abril aconteceu quando estava algures num comboio. Vi na televisão que se passava algo e pedi para me traduzirem. Fiquei numa excitação louca, fui ter com o meu irmão que vivia na Holanda, telefonei para os meus pais em Portugal. Tinha uma situação militar irregular, corria o risco de não conseguir passaporte, mas 15 dias depois estava em Lisboa.

Por esta altura já se tinha afastado do Partido Comunista. Porquê?

Ainda estive uns quatro ou cinco anos no exílio ligado a células no estrangeiro de estudantes portugueses comunistas, mas saí em 1969 ou 1970. Creio poder dizer hoje que nunca fui um grande convicto do ponto de vista filosófico. Na universidade havia um pacote de sociólogos, politólogos e economistas de todo o mundo marxista e dei por mim a ter uma enorme simpatia, mas foi pelo Tocqueville, pelo Raymond Aron, pelo Montesquieu, pelo Max Weber, que não tinham nada a ver. É mais fácil cair no movimento comunista num país sem liberdade, mas na Suíça já não era assim e cada vez sabia mais sobre o que era o comunismo. Naquela altura as minhas simpatias eram erráticas. Simpatizei com o Fidel Castro e o Che Guevara, porque era contra a União Soviética; simpatizei com os chineses, porque abriram a polémica contra os revisionistas russos; gostava do PC italiano porque era da sociedade. Andava à procura das minhas simpatias.

Quando regressa a Portugal encontra-se no Partido Socialista?

Sim. Entre 1970 e 1974 firmei algumas simpatias e aproximei-me do universo do socialismo democrático europeu. Quando voltei andei uns meses a conhecer Portugal, que não conhecia. Só entrei no PS em 1975. Foi uma escolha ideológica, mas foi sobretudo porque o PS era na altura o mais importante instrumento de criação da democracia e defesa da liberdade. Entrei no PS no dia em que houve a primeira grande manifestação contra a unicidade sindical e a imposição de uma lei sindical. Foi no dia do célebre discurso do Salgado Zenha no Pavilhão dos Desportos.

Tinha assim tanta vontade de assumir um papel activo na política que abriu mão de parte da tal liberdade que lhe é fundamental para se filiar num partido?

Pensei nisso muitas vezes. Era uma questão de negócio. Troquei alguma liberdade de acção pela possibilidade de organizar a minha luta com a dos outros e ter eficácia. Acontece que foi tudo muito rápido: entrei em 1975 e em 1978 já tinha concluído que o que perdia era muito superior ao que ganhava. Saí do partido, do Parlamento, demiti-me e fui para a minha vida. Desapareci da política partidária depois de ter passado a ideia que o PS não estava de acordo com o que eu tinha feito nas lutas da reforma agrária – essa foi a polémica que tive com o Dr. Mário Soares e razão pela qual deixámos de nos falar durante anos.

No entanto é ele que marca o seu regressa à política?

Sete anos depois, em 1985, estava novamente com vontade de intervir e escolhi a eleição presidencial para tomar uma atitude pública ao convidar o Dr. Mário Soares a ser candidato – ele era primeiro-ministro na altura – e empenhei-me na campanha para a sua eleição. Quando estava a começar a campanha, ele e o PS convidaram-me para ser deputado. Disse que aceitaria, mas que o partido tinha de dar um sinal de que estava de acordo com aquilo que eu tinha feito nas lutas da reforma agrária. Convidaram-me para cabeça de lista em Évora, o que era um sinal implícito que reconheciam que aquilo que tentei fazer pertencia à linha política dos socialistas. Ao fim de um ano como deputado independente, pedi adesão ao PS. Entrei em 1986 e ao fim de quatro anos cheguei novamente à conclusão que o que eu dava ao partido era muitíssimo mais do que aquilo que o partido me dava.

raquel.carrilho@sol.pt