curioso, a mim acontece-me exactamente o contrário: ao ver eusébio é de emílio andrade júnior que me lembro, o tio emílio da história que agora lhe conto.
continua a controlar travessas, mesas e sensibilidades. fá-lo com sabedoria e tranquilidade, como acontece apenas com os homens de contas realmente saldadas – muitos lhe dizem isso, o próprio lula da silva afirmou-o da última vez que esteve em lisboa… perguntou-lhe pelo segredo da sua longevidade, pediu-lhe para lhe contar da vida de sua mãe, a tia matilde.
emílio começou por evitar contá-la. apesar de tudo não era coisa que se pudesse fazer sem perder algum tempo, minutos que os políticos nunca ou raramente têm. lula foi diferente e tornou o negócio simples: «sei que não está na carta, mas se o senhor emílio me arranjar um bom bacalhau à brás terei todo o interesse em ouvir a história de sua mãe, demore o tempo que demorar».
não sei se precisei do tempo de lula para ficar a conhecer a tia matilde. e também não sei como está o seu para agora a ouvir da minha boca… posso tentar, julgo que valerá a pena.
tudo começou com cores de vida: matilde juntou-se cedo com um homem que falava no sonho de serem independentes. e assim parecia. abriram a sua primeira casa de pasto, onde preparavam o mata-bicho popular entre os que trabalhavam nos caminhos-de-ferro, na descarga da batata e do carvão, na venda de jogo e nos pedreiros da calçada e empregados fabris. emílio tinha cinco anos e aos 12 já os pais estavam estabelecidos no sítio onde ainda hoje está.
relação difícil a dos pais. matilde e o pequeno emílio sofreram muito com o homem da casa – tornou-se uma verdadeira obsessão, para um e para outro, encontrar solução para que o sonho do passado pudesse sobreviver. a mãe foi-se fragilizando e na cabeça de emílio tornou-se claro que teria de encontrar, o quanto antes, uma mulher que o amparasse e pudesse ajudá-lo a manter a taberna pela qual matilde tanto sofrera.
encontrou as respostas num jogo da laranjinha. não lhe sei dizer o bastante sobre isto, jogava-se nos tascos de lisboa com uma bola de madeira que equipas de três pessoas atiravam a umas tabelas – as tardes de fim-de-semana eram passadas assim, formavam-se grupos e as tabernas jogavam umas contra as outras. num dia da década de 1940, em plena ii guerra mundial, emílio e mais dois foram jogar a caneças… quando se jogava fora havia sempre petiscos que os da casa arranjavam – nessa divina ocasião, três raparigas levaram carapaus fritos e pastéis de bacalhau para a mesa dos rapazes; o filho de matilde, assim que a viu, confessou ao amigo jaime que acabara de antecipar o seu futuro. a isabel, perguntou-lhe. a filha do dono da tasca, insistiu. sim, a isabel. sim, a filha do dono da tasca, respondeu.
emílio passou a telefonar para caneças com o pretexto de saber pela rapaziada. e insistiu em jogar mais vezes fora do que a conta, ali parecia jogar em casa e gastava parte das suas noites a preparar as piadas que levava à namoradinha.
deu em casamento, claro. isabel mudou-se para a cozinha de matilde, sogra que lhe ensinou o que sabia. porém, o pai continuava a dificultar as coisas… o ambiente tornara-se insuportável e emílio e isabel, com uma menina recém-nascida, mudaram-se para caneças, pensaram que seria para a vida.
até que um dia, menos de um ano depois, matilde surgiu-lhe à frente no desvio do lumiar, à esquerda da calçada de carriche; para ali chorarem os dois. a mãe intimou-o a regressar porque tudo sacrificara em seu nome, ele não tinha o direito de desperdiçar agora o que tanto lhe custara a conquistar. avisou-o ainda de que não lhe restava muito tempo.
regressaram à taberna. ao mesmo lugar onde lula da silva ouviu deliciado, numa mesa perto de um antigo poço, a história que partilho consigo. talvez a velha matilde nunca tenha imaginado que, com o tempo, a taberna se transformaria num lugar de prodígios gastronómicos. talvez mesmo lhe fosse impossível imaginar o que quer que fosse, estava demasiado ocupada em deixar o campo aberto para o filho emílio e em livrar-se do peso de um marido que não suportaria tornar a ver.
emílio fez-lhe a vontade, mas pouco menos de um ano depois, no verão de 1946, dia 15 de setembro, matilde suicidou-se num poço perto da mesa de lula que, num respeitoso e comovido silêncio, ouviu uma história que jurou ser-lhe impossível esquecer.
o primeiro dia em que abriram as portas após a tragédia, um talhante ofereceu-lhes um bife – o extraordinário é que apenas um cliente lhes entrou pela porta, homem que nunca mais voltariam a ver e que apenas lhes pediu o bife que parecia ter sido encomendado por uma força transcendente.
emílio e isabel viram a ‘aparição’ como um sinal. e nunca mais pararam de crescer. tasca ficou até 1958, a partir daí restaurante se tornou. o meu preferido em lisboa. onde lula pediu bacalhau à brás e ouviu o tio emílio que, aos 91 anos, é muito mais do que o personagem conhecido por ter acolhido eusébio quando este chegou (no princípio dos anos 60) com frio, sem amigos e o tenebroso peso da desconfiança.
felizmente encontrou o filho de matilde que, sem precisar de saber quem era, lhe ofereceu uma amizade que perdura com tanta força como a memória a quem brinda todos os dias. quando lá for brinde com ele.
