Dar ancas às consoantes e devolver seios às vogais

O último dia do III Encontro de Escritores em Natal foi um forrobodó literário. O povo dançou e o povo escutou.

foi num grande forró que se terminou o iii encontro de escritores de língua portuguesa em natal, numa festa que juntou leitores e escritores, brasileiros, portugueses, angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e guineenses. a festa fez-se em português e uniu numa mesma dança os vários países da lusofonia. mas antes da noite feita de dança, houve tempo para se falar de literatura.

ao escritor moçambicano mia couto, juntou-se o cabo-verdiano germano de almeida e a brasileira ana cascudo, que, perante um teatro alberto maranhão (no centro de natal) quase cheio falaram sobre literatura oral e tradicional, tão presentes nos seus países.

mia couto lembrou a população moçambicana, tão rica nas suas histórias, feitas de tantas línguas e dialectos, que não conhecem expressão escrita. e contou de uma vez que uma senhora lhe pediu para falar de si, dançando. e de como na falta de jeito para os movimentos e na impossibilidade da dança, lhe apresentou um homem vazio. não houve palavras que o salvassem. «queria-me ler como se eu fosse um texto. mas eu era apenas uma página em branco».

«mais do que me inspirar na tradição oral, a minha intenção é introduzir os universos da oralidade na lógica da escrita, devolver à palavra grafada o gesto, o corpo, o sexo da fala», disse mia couto, perante uma plateia rendida às suas palavras. «é isso que me anima enquanto escritor: ensinar a minha escrita a dançar, dar ancas às consoantes, devolver seios às vogais e, enfim, reinventar sensualidades que foram sendo roubadas pela cega obediência às normas da gramática».

mia não conseguiu dançar. mas, à noite, o povo todo que o escutou fê-lo por ele. e a literatura transformou-se num imenso forrobodó.

rita.s.freire@sol.pt