‘Se alguém disser que o filme é aborrecido, alego que o copiei’

No dia 4 de Novembro de 1979, o ano em que o aiatola Khomeini tomou o poder no Irão, um grupo liderado por estudantes islâmicos entrou na embaixada americana em Teerão e fez 52 reféns. Motivo: o apoio que sucessivos governos americanos (incluindo o do então Presidente Jimmy Carter) haviam dado ao Xá Mohammad Reza…

houve, porém, seis diplomatas americanos que escaparam ao cativeiro e se esconderam nas embaixadas sueca e italiana. fazendo-se passar por cineastas canadianos em busca de lugares exóticos para filmar, acabariam por, com o apoio do embaixador e do parlamento canadianos, conseguir sair do país. a história da sua fuga é contada em argo, o novo filme de ben affleck, que já estreou em portugal.

benjamin geza affleck sabe o que quer. dizem os seus dados biográficos que desde que se lembra que sempre quis ser realizador. aos 25 anos segurava já um óscar pelo guião que co-escreveu com o amigo matt damon para o filme o bom rebelde. e não falta quem o indique para várias categorias a propósito de argo. em londres comprovámos o seu lado criativo e determinado e a sua energia contagiante.

é verdade que george clooney e grant heslov [que colaboraram no aclamado boa noite e boa sorte] detinham os direitos deste projecto?

este projecto estava no domínio secreto até que a cia o ‘desclassificou’ em 1997. entretanto, um dos nossos colaboradores ouviu a história e escreveu um artigo com o lead ‘agente da cia usa hollywood para resgatar reféns americanos’. entretanto, o george [clooney] comprou os direitos e pediu para se produzir o guião, o que demorou alguns anos. quando o li fiquei abismado. era um drama magnífico, um thriller com elementos de comédia, além de se tratar de uma história verídica. liguei ao george e expus-lhe a minha visão. falámos e acho que acabou por concordar só para não ter de me ouvir…

pensou logo que poderia ter o papel principal?

[irónico] na altura dormia com o realizador, por isso foi mais fácil…

o que recorda desse período, no final dos anos 70?

muito pouco. lembro-me dos bonecos do filme star wars com que brincava e pouco mais.

gostou de usar aquela barba e corte de cabelo muito característicos dos anos 70?

posso dizer-lhe que odiei aquele corte de cabelo. mas os meus filhos ainda odiaram mais a barba. passavam os dias a pedir-me para a cortar. eu dizia-lhes que tinha de a ter para o meu trabalho. mas eles continuavam: ‘pai, que trabalho é esse que te obriga a andar com essa barba foleira?’.

e você, como encarou essa obrigação?

ossos do ofício… era desconfortável, mas era exactamente como tony [mendez, o especialista da cia que elaborou o plano de fuga] usava na altura. fiquei contente quando pude ver-me livre dela.

até que ponto foi difícil dirigir-se a si próprio? foi uma experiência tipo dr. jekyll e mr. hyde?

tento não fazer má figura diante dos grandes actores que participam no meu filme. portanto, correndo o risco de humilhação permito-me fazer 20 ou 30 takes.

é verdade que sempre quis ser realizador?

sim, sempre me interessei pelo trabalho de câmara, bem como por fotografia. havia ainda o trabalho de actor e a escrita. mas não sabia muito bem como combinar tudo. é claro que cometi muitos erros. e como actor aprendi muito.

trabalhou recentemente com o terrence malick, que muitos consideram quase um ‘deus’ da realização. o que aprendeu com ele?

o ‘terry’ é uma pessoa incrível e muito generosa. o que mais retive é que ele apenas faz os seus filme para si próprio. é um artista. e é preciso ter coragem para fazer isso.

gostaria de poder dirigir o verdadeiro argo que nunca chegou a ser feito?

isso seria óptimo. seguramente, muito mais divertido do que dirigir pessoas na turquia [para sugerir paisagens de teerão].

conheceu o tony mendez? como foi a vossa relação durante todo este processo?

sim, conheci-o. ele esteve ligado a todos os momentos do filme. tem-nos apoiado imenso. e tem até uma participação como figurante na cena do aeroporto de dallas.

o filme é lançado numa altura de grande instabilidade e em que muitas embaixadas foram atacadas. como acha que será recebido à luz do panorama político?

é um filme que relata acontecimentos passados há mais de 30 anos. quando peguei nele não tinha condições de prever o que se passaria entretanto. todos ficámos horrorizados com o que se passou em benghazi, na líbia. bem como com os protestos no cairo. não se trata de um filme político, mas deixa-nos ainda mais solidários com as embaixadas do mundo inteiro. numa altura em que a história se repete, é uma homenagem para eles.

chegou a visitar o irão?

sempre quis ir ao irão, mas disseram-me que seria complicado não encarar este filme como uma crítica ao regime. no fundo, a reacção seria imprevisível. mesmo amigos a quem pedi algum material fílmico da altura e dados sobre a geografia, acabaram por não me enviar nada, dada a vigilância apertada do regime. é uma cultura fantástica que espero vir a conhecer um dia.

argo faz-nos lembrar o melhor cinema dos anos 70, como os três dias do condor, por exemplo. era também um tipo de cinema que gostava de evocar?

este projecto deu-me a possibilidade de imitar o estilo de alguns dos meus filmes favoritos. e esse é um dos melhores, se não mesmo o melhor desse período. foi uma desculpa para ‘roubar’ ideias que poderiam dar ao espectador a noção de época. servimo-nos de os homens do presidente e dos filmes de cassavetes e costa gavras, mas também de a batalha de algiers. se alguém disser que é aborrecido, poderei sempre alegar que foi copiado…

a crise dos reféns americanos está ligada à queda de jimmy carter e ao período de ascensão de reagan. teve ocasião de falar com o ex-presidente carter sobre o projecto?

sim, entrevistámos o presidente carter e é a voz dele que aparece no final. o que ele diz nas entrelinhas é que esta história o poderia ter ajudado, pois estava numa posição incómoda na altura, com reagan a ganhar terreno. no final, acabou por ser prejudicado.

como lhe ocorreu complementar esta história com elementos de humor?

esta história tem diversos sabores e registos. e um deles é a sátira. apesar de este elemento poder estragar o elemento mais sério que se liga com o drama dos detidos, tive a sorte de poder contar com dois actores capazes de ser convincentes. tanto o alan [arkin] como o john [goodman] tiveram esse nível e eu apenas tive de me preocupar se teria de cortar algumas piadas. mas atenção, nunca deixam de ser realistas e o crédito vai para eles.

na cena final parece que existe mais ficção do que realidade. até que ponto isso é intencional?

o final é a parte do filme que tem mais ficção. mas a estrutura em três actos valoriza bem a história. neste caso fazia sentido haver um clímax para exteriorizar o momento de medo. no entanto, todo o percurso que vemos no final do filme aconteceu mesmo. e o avião que deveriam apanhar estava mesmo a receber as últimas reparações. esse elemento de tensão existiu. e eles estiveram quase a ser apanhados, embora não se tivessem apercebido. é tudo isso que aparece nessa sequência de perseguição automóvel já na pista de descolagem. como tudo foi baseado em depoimentos de pessoas que estão vivas, procurou manter-se esses elementos. os pecados que cometi foi mais por omissão de detalhes.

como acha que este filme vai ser visto no mundo islâmico? isso preocupa-o?

naturalmente, quando fiz este filme estava à espera que houvesse reacções. mas sobretudo acho que o filme honra os diplomatas que servem o seu país no estrangeiro. e o que vemos é que frequentemente se colocam em perigo.

tentou falar com algum cineasta iraniano para captar uma sensação mais realista de teerão em 1979?

sim, falei, até porque os iranianos são um povo que aprecia bastante a cultura ocidental, mais até do que qualquer outro país do médio oriente. disseram-me que, por certo, as autoridades iriam ver o filme. se calhar irá circular em cópias piratas no mercado negro.

o que recorda da experiência de o bom rebelde?

foi uma experiência inesquecível para quem tinha 25 anos na altura. olhando para trás, era praticamente um miúdo. foi algo muito puro, pois foi feito como se fosse para nós, como um filme familiar.

corre o rumor de que argo pode ser candidato ao óscar. o que acha disso?

para já, só quero que seja visto em todo o mundo. se muita gente vier vê-lo, será uma magnífica experiência colectiva. se ninguém o vir, será apenas uma árvore a cair na floresta.

no caso provável de seguir para a cerimónia, acha que ficará mais nervoso do que com o bom rebelde?

já participei em inúmeras cerimónias de prémios… e sobrevivi.

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