O relato de quem fugiu ao FMI dos anos 80 e não pensa regressar

Lurdes Fernandes, hoje com 46 anos, emigrou para França em 1984, pouco depois do início da segunda intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Portugal, e não pensa regressar, nem em breve, nem na reforma.

lurdes é ferreira de família, fernandes desde que se casou com fausto, de 47 anos, com quem tem dois filhos, de 21 e 16 anos, e uma filha, de 19. o casal é natural de lafões, no distrito de viseu.

esta portuguesa é a única porteira da rua gauthey, no xvii bairro de paris. além disso, tem outros trabalhos de limpeza em prédios e casas do bairro. o seu marido é trabalhador na construção civil. os filhos são todos estudantes.

antes da mudança definitiva, lurdes ferreira já tinha trabalhado em frança durante alguns anos. estava no país sem autorização de residência, vivia “com medo de ser apanhada pela polícia”, e ocupava-se da casa e dos filhos de um casal português emigrante.

fez 18 anos em portugal e voltou a sair. deixou um país que o seu pai dizia viver “no tempo das vacas magras, porque tinha que se apertar muito o cinto, não havia trabalho e ganhava-se muito pouco”.

saiu de um país onde, ouvia pela boca da sua mãe: “já se dizia que cada português devia não sei quanto ao estado para poder pagar a dívida que tínhamos na altura, já, a esse fmi”.

fausto viria a juntar-se a ela quatro anos mais tarde, em 1988. o regresso a portugal fazia parte dos planos dos dois, mas foi sendo adiado. é hoje um cenário “impossível” para o casal.

“eu vim para cá para fazer uma casa em portugal. combinámos que, seis anos depois, quando o filho mais velho [tivesse idade para ir] para a escola, regressávamos”, conta fausto.

“fomos adiando, adiando, adiando e estamos cá. já não pensamos em regressar porque ir hoje viver para portugal é impossível”, acrescenta lurdes. acham que o acesso aos cuidados de saúde em portugal é difícil, dizem que fizeram muitos amigos em frança, e que se habituaram à cultura, às mentalidades.

não chegam ao fim do mês a contar trocos, a fazer esticar dinheiro. trabalham muito – às 06h00 já ambos estão na rua –, mas o que ganham chega, além do sustento da família, “para cinema, espectáculos, para comer fora, para conviver”.

em portugal, acreditam, seria diferente: “tenho pena de que o país tenha chegado ao ponto em que está. eu não sei como é que as pessoas que têm que pagar uma renda [de casa] fazem para viver com o ordenado mínimo”, diz a mulher.

o casal diz ainda que, nos últimos tempos, se vê muita gente a chegar de portugal, e também muita gente que já fora emigrante em frança a regressar com as famílias.

para lurdes e fausto fernandes, hoje, emigrar para frança “é muito fácil”. a porteira argumenta que os novos emigrantes “arranjam sempre conhecimento com alguém que lhes encontre trabalho e alojamento”, e lembra que já não existe “o problema das fronteiras”.

“eu vivi aqui muitos anos sem papéis. o fausto ia para o trabalho, levava uma sandes dentro de um saquinho de plástico, deixava lá tudo para não ser apanhado de volta, pela polícia, [para eles não poderem provar que ele] vinha de um trabalho”, lembra.

embora os portugueses estejam a ser obrigados a sair do país para procurarem uma vida melhor, considera esta emigrante, agora há também muitos meios de comunicação através dos quais podem contactar a família: “nós telefonávamos duas ou três vezes por ano e escrevíamos”, recorda.

e há, acrescenta, mais de 1 milhão de portugueses emigrantes em frança, que formam uma rede familiar, de amizade e de solidariedade que ajuda a que o impacto para quem chega não seja tão duro.

há mesmo ajudantes certificados. lurdes ferreira, por exemplo, venceu, em maio deste ano, com os votos dos vizinhos do seu bairro, o prémio de “ange gardienne” (anjo da guarda).

lusa/sol